sexta-feira, 24 de julho de 2015

Mário Ferreira dos Santos - CAPÍTULO 1 DO GÊNERO.


CAPÍTULO 1
DO GÊNERO

Tudo leva a indicar que nem o gênero nem a espécie são termos simples 1. O gênero, com efeito, diz-se, desde logo, de uma colecção de indivíduos que se comportam de certa maneira em relação a um único ser e 20 em relação entre si. É em virtude dessa significação que se fala da raça dos Heráclidas, pelo facto de sua maneira de comportar-se 2 e de ter uma origem única, a saber, Hércules, e usa-se também de todos aqueles que têm entre si um certo parentesco, a partir do antepassado comum, e o nome que se lhes dá separa-os radicalmente de todas as outras raças.

Gênero é tomado, ainda, em outro sentido: 2  é o ponto de partida 3 da geração de cada coisa, quer se trate do próprio gerador, quer do lugar em que uma coisa foi engendrada.  Assim, dizemos que Orestes surgiu da raça de Tântalo, e Hílis, da de Hércules; dizemos, ainda, que Píndaro é da raça dos Tebanos, e Platão, da dos Atenienses, pois a pátria é também uma espécie de princípio da geração de cada coisa, do mesmo modo que o é o pai"4.

5  Este, parece, é o sentido mais corrente: são chamados Heráclidas os descendentes da raça de Hércules, e Cecrópidas, os descendentes de Cécrops, assim que seus aparentados.

Chamou-se, de início, gênero, o ponto de partida da geração de cada coisa, depois, mais tarde, a multidão dos que provêm de um só princípio, Hércules, por exemplo, 5; ao deliitá-lo e ao separá-lo dos outros, dizemos que esse grupo é integralmente da raça dos Heráclidas.

10  Há, ainda, um outro sentido de gênero, é o sob o qual está ordenada a espécie, e esse nome certamente lhe foi dado por sua semelhança com os casos precedentes: o gênero, nesse sentido, com efeito, é uma sorte de princípio para todas as espécies que lhe estão subordinadas, e parece conter também toda a multidão classificada sob ele 6.

O gênero, é, pois, tomado em três sentidos,  15  e é o terceiro o do qual tratam os filósofos: foi o que eles descreveram quando definiram o  gênero ao dizer que ele é o  atributo essencial (in quid) 7 aplicável a uma pluralidade de  coisas, que diferem entre si especificamente (no seu quid), como animal, por exemplo.

Com efeito, entre os atributos, uns se dizem apenas de um só ser, como o são os indivíduos 8, por exemplo, Sócrates, este homem aqui, esta coisa aqui; os outros dizem-se de diversos seres, e é o caso dos gêneros, das espécies, das diferenças, dos próprios e dos accidentes, que têm caracteres comuns e não particulares a um indivíduo.

20 O gênero, é,  por exemplo, animal; a espécie, homem; a diferença, racional; o  próprio,  faculdade de rir;  accidente,  branco, negro,  o "sentar-se". Assim, pois, os gêneros diferem, de um lado, dos atributos aplicáveis a um único indivíduo,  em serem atribuídos a uma pluralidade; diferem, também, por outro lado, dos atributos aplicáveis a uma  pluralidade, a saber,  25  as espécies, pelo facto das espécies, sendo totalmente atribuídas a diversos indivíduos, não o serem, contudo, senão a indivíduos, que não diferem entre si especificamente, mas apenas numericamente.

É assim que homem, que é uma espécie, é atribuído a Sócrates e a Platão, os quais diferem um do outro, não em espécie, mas em número, enquanto animal, que é um gênero, é atribuído ao homem, ao boi e ao cavalo, os  3  quais diferem entre si pela espécie, e não apenas pelo número.

O gênero difere do próprio, por sua vez, por ser este atribuído a uma única espécie, da qual é próprio e aos indivíduos classificados sob essa espécie; por exemplo, a faculdade de rir é próprio só do homem e dos homens particulares; o gênero, ao contrário, não é atribuído a uma única espécie, mas a uma 5 multiplicidade de termos que diferem em espécie.

O gênero difere, por fim, da diferença, assim como dos accidentes comuns, embora as diferenças e os accidentes comuns sejam atribuídos a termos múltiplos, e que diferem especificamente, por não serem, contudo, atribuídos essencialmente.

Com efeito, se perguntamos a qual termo diferença e accidente são atribuídos, dizemos que eles são atribuídos não essencialmente, 10, mas, sim, qualitativamente; se se pergunta, por exemplo, qual (qualis) é o homem, dizemos que ele é racional, qual é o corvo, dizemos que é negro; no primeiro caso, racional é uma diferença, e, no segundo, o negro é um accidente. Mas quando se pergunta o que é (quid) o homem, respondemos que é um animal, e animal como dissemos, é gênero do homem.

Conclusão: ser afirmado de uma pluralidade de termos é o que distingue o gênero dos predicados individuais atribuídos a um único indivíduo; ser afirmado de termos especificamente diferentes é o que o distingue dos termos atribuídos como espécies ou como próprios; enfim, ser atribuído essencialmente é o que o separa das diferenças e dos accidentes comuns, que são atribuídos aos sujeitos, dos quais são respectivamente atributos, não em essência, mas em qualidade, ou numa relação qualquer. A noção de gênero, tal como 20 acabamos de descrever, não peca, contudo, nem por excesso, nem por defeito, de ciência 9.

1)  Simples, aplôs legesthai, em que o advérbio ap1ôs  equivale ao conceito latino de simp1ex.

2)  Skesis, em gr., relação, modo de comportar-se em face de outro.

3) Arkhê é o princípio, ponto de partida. É distinto de stoikheion, que é elemento, causa imanente. A causa é um princípio, tomado genericamente, não, porém, todo princípio é causa. O ponto é princípio da linha, não, porém, sua causa.

4)  Diz-se mais a mãe pátria.

5)  Hércules, como origem, é  genos, genus, em latim, e genos é o conjunto de todos os seus descendentes.

6)  Hércules é o princípio dos Heráclidas.

7)  Kathegorein, significa afirmar, atribuir, mas aqui a atribuição é essencial, en tô ti esti  de Aristóteles, cujo  to ti equivale ao  qui est latino, a essência, a qüididade, que equivale muitas vezes à primeira categoria, a substância,  ousia, como veremos no "Das Categorias", de Aristóteles.

8)  Tá átoma, os que não são divididos, ou não-divididos, impartíveis, insecáveis, equivale, aqui, a indivíduos, os que não contêm gêneros nem diferenças que lhes sejam inferiores, como veremos.

9)  Condições exigidas pelas regras da definição, como analisamos nos comentários, pois a boa e adequada definição deve conter todo o definido e nada mais que o definido.

§

SÍNTESE DA IDÉIA DE GÊNERO

A definição do gênero é uma definição descriptiva e não essencial. Sua essência consiste na razão de universalidade referente às espécies, que ele contém, que a ele estão subordinadas, distintas in quid  (segundo a qüididade de cada uma).

É um todo potencial, mas indeterminadamente, e parte potencial, porque se contrai pela diferença na parte qüididativa da espécie.

Proporcionalmente, o gênero refere-se à matéria de uma coisa, como a diferença refere-se à forma. Se o gênero constitui um todo, qualquer todo não constitui um gênero. A diferença é que dá a determinabilidade ao gênero, que, enquanto tal, é indeterminado, e predica-se in quid, incompletamente, de uma coisa.

Nas especulações filosóficas sobre o sentido lógico do gênero, conclui-se, quando se filosofa com sanidade, que o gênero contém as diferenças  potencialmente, não actualmente. A espécie é,  in concreto,  o composto de  matéria  e  forma, por isso diz-se que o gênero refere-se à matéria, e a diferença à espécie. Assim, animal, no homem, é  matéria, e a animalidade, o  gênero. Racional é a  diferença  de que racionalidade  é a forma.  

Homem é, pois, a espécie, porque reúne ambas. Assim, homem pode ser olhado in concreto e in abstracto. O gênero contém, potencialmente, as diferenças, não actualmente. Assim, na Lógica, animal contém potencialmente a racionalidade. O gênero as contém, indeterminadamente, enquanto a espécie as contém determinadamente. A espécie está contida, implicitamente, no gênero, como parte. A espécie é um todo determinado de um todo indeterminado, e não significado, mas implicitamente contido naquele. Deste modo, a espécie perfecciona o gênero, porque actualiza uma de suas possibilidades, pois a racionalidade está implicitamente contida in potentiam no gênero animal. Como as diferenças podem ser múltiplas e heterogêneas, e são típicas das espécies, o gênero não se pode predicar delas. Assim, não se pode predicar animal de racional, dizendo-se: o que é racional é animal, porque racional não está contido, actualmente, em animal. Também a diferença  não se pode predicar do gênero. Deste modo, não se pode dizer: é animal, logo é racional, porque não se pode ainda dizer que animal é racional. E a razão é porque o que é predicado per se de alguma coisa deve estar contido actualmente em sua essência, já que a essência de uma coisa exige o que é actual. Se o gênero se predicasse per se das diferenças, as espécies seriam todas idênticas, pois o que as distingue é a diferença.


 Mas o gênero predica-se per se da  espécie, mas esta contém a diferença, e o gênero é predicado incompletamente daquela. Pode-se, contudo, predicar, sim, per accidens: algum racional é animal, o que é válido.

Que se pode tomar a matéria de uma coisa como gênero, e a diferença  como forma, justifica-se pelas seguintes razões: se há coisas que não são compostas de matéria e forma, mas apenas de potência e acto, estas podem ser consideradas como gênero e espécie, porque a potência refere-se à genereidade, e o acto à formalidade. Nem tudo quanto é assim tem matéria e forma, ou matéria informada. Mas tudo quanto tem matéria e forma tem genereidade e formalidade. Tudo quanto é composto tem uma determinabilidade, uma natureza determinada per se, à qual podemos, intencionalmente, chamar gênero e diferença. 

Toda coisa, que tem uma qüididade, tem-na  per se, e pode ser classificada no predicamento aristotélico de substância.

A diferença na espécie não advém como uma parte da parte, mas um todo determinado e assinalado a um todo indeterminado, e não assinalado. Assim, logicamente, podem ser tomados como gênero e diferença.

Contudo, gênero e diferença não são considerados como uma unidade per accidens, mas como uma unidade per se. Não há o gênero sem a espécie.

Não há animal que não seja homem, cavalo, boi, etc. Animal é sempre, especificamente, este ou aquele. A diferença não é algo que advém per accidens ao gênero, mas per se.

A matéria com a forma (informada) constitui unum per se. Deste modo, vê-se que o gênero tem a razão da matéria, e a diferença a razão da forma. Como entes de razão, gênero e diferença não se distinguem real-realmente, mas apenas por 
distinção de razão. A matéria e a forma são partes  reais-reais (in concreto), mas gênero e diferença são partes de razão.

A diferença não é um accidente que ocorre ao gênero, como o accidente que ocorre ao indivíduo. Este último não forma unum per se com o subjecto, no qual inhere, mas a diferença forma unum per se; por isso nós podemos distingui-los apenas pela razão, já que são entes de razão, como o são todos os entes lógicos.

O nome, que damos às coisas, é um sinal intelectual do conceito. Tem ele, como função, referir-se universalmente à intencionalidade. O que o nome significa é a concepção intelectual, é algo que está na mente, que pode representar, adequadamente ou não, o que está fundamentalmente na coisa, já que nossos conceitos são proporcionados à nossa mente, e dada a imperfeição  dela, não se identificam com o que é na coisa, mas apenas intencionalmente. Assim, quando conceituamos homem como animal racional, notamos que nele há algo indeterminadamente em comum com os animais, e determinadamente o que tem de diferente e próprio, a racionalidade. Nem tudo quanto está no homem é representado determinadamente por animal, mas indeterminadamente; enquanto, pela racionalidade, é representado determinadamente. São estas razões que demonstram que a distinção que há entre gênero e diferença é apenas de razão.

O animal, que está no homem, não é o mesmo que está no cavalo, no leão, se os tomarmos in concreto.

Como o gênero predica-se in quid incompletamente de um ser, não lhe corresponde, como tal, nenhum indivíduo subsistente, porque estes representam a espécie especialíssima, como cão, casa, árvore, homem.

Os gêneros são divididos pelas diferenças opostas, que vão constituir as suas espécies. 

COMENTÁRIOS AO CAPÍTULO 1

Define Porfírio como gênero "o atributo principal aplicável a uma pluralidade de coisas, que diferem entre si especificamente", no seu  quid, no que constitui o seu quid (a sua espécie). O primeiro problema que surge aqui é saber se essa definição é boa.

Desdobremos os pontos principais daquela. 1)  atributo predicável de muitos, portanto sua universalidade é manifesta; 2)  de muitos, mas especificamente distintos, o que torna o conceito atribuído um conceito  genérico, pois o gênero contém as suas espécies, dada a sua genereidade (genereitas); 3)  predicado in quid, en tô ti esti, que é a sua ratio praedicandi. É, pois, um atributo essencial, e este é predicado de todos in quid, de todos os indivíduos que entram na extensão do conceito.

Torna-se, agora, de máxima importância examinar os termos "de muitos especificamente diferentes", e o significado de essencial (in quid) (en tô ti esti).

O que é genérico implica subordinados que tenham entre si algo em comum e algo distinto. Mas o que têm em comum não pode ser algo meramente accidental, contingente, que pode ter ou não, sem deixar de ser o que é, mas, sim, algo sem o qual o ente deixa de ser o que é para ser outro, algo que o altera fundamentalmente.

Ao que constitui essa estructura eidética do ser chama-se essência formal na linguagem aristotélica, e não é algo meramente accidental, com o se verá ao examinar o accidente, mas algo que é intrínseco e actual, e imprescindível da coisa, sob pena de deixar ela de ser o que é para ser outra coisa. Mas tais coisas, que se dizem estar incluídas no gênero, que participam da mesma essencialidade, possuem, contudo, também em sua essência, algo que as distingue entre si.

De modo que aquele aspecto, que é geral, generalis, constitui o gênero, e o que é deste e daquele em sua heterogeneidade é constituinte de sua especificidade. Assim, o gênero possui  os seus inferiores, as espécies a ele subordinadas. Deste modo, o
indivíduo abstracta-se no gênero e  contracta-se  na espécie. 

Conseqüentemente, a espécie é mais rica de notas que o gênero, que, por ser geral, não inclui o que é específico senão potencialmente e não actualmente como já o acentuava Santo Alberto in De Praedicabilibus, tract. 3. c. 4. Ora, jamais se deve esquecer que, para Aristóteles, como para os escolásticos, tanto gênero como espécie são entes de razão, e não entidades sistentes de per se e in se, separadas ou não das coisas.

Predicar in quid significa predicar essencialmente, e distingue-se da predicação in quale, que é a predicação accidental, do que é accidental. Assim, a predicação in quid é uma predicação substantiva, enquanto a predicação in quale é uma predicação adjectiva, como nos mostra Tomás de Aquino em seu "Summa totius Logicae Aristotelis". A diferença, como racional no homem, é algo qualitativo, é um qualis portanto, e predicá-lo do homem é predicá-lo  in quale, mas essa qualidade é algo que decorre da essência; portanto, é um  in quale in quid. E por que tal se dá? A razão é simples. A diferença está em relação ao gênero numa relação de posterior a anterior. Há prioridade do gênero e posterioridade da diferença. A diferença não constitui o que é primariamente fundamental da essência, mas algo que advém ao gênero, como algo que, potencialmente, ele contém, cuja actualidade vai constituir a espécie. A diferença, desse modo, contrai o gênero, e a espécie é o gênero contraído pelo modo qualitativo da diferença, que é um adjacente. É o que expressa Aristóteles nos Tópicos 7. cap. 3 (153 a 15), pois, no modo de predicação, o gênero predica-se in quid e a diferença in quale.

A diferença, predicando-se no gênero, não sé o contrai na espécie, como o completa, porque o gênero, tomado apenas em sua  genereidade  predica-se incompletamente de alguma coisa. Por ter o gênero, em função do seu gênero próximo (que o subordina), a função de espécie em relação àquele, há, finalmente, como veremos em breve, uma espécie que não tem mais espécies subordinadas, uma espécie que é apenas espécie, que é especialissimamente espécie, e que se chama espécie especialíssima, como o são aquelas que se predicam dos entes concretos, como casa, árvore, mar, etc.

Deste modo, nota-se que, acrescentando-se a predicação da diferença, o gênero se contrai, ou melhor,  é tomado contraidamente na espécie, que completa em acto o que naquele estava apenas potencialmente, tornando-se, assim, um modo substantivo e  in quid  de predicar. Assim, "predicar-se in quid  (essencialmente) de muitos diferentes especificamente", vê-se que tal é contraível pela diferença, contida potencialmente, que, deste modo, mais o especifica, o que mostra ser boa a definição de Porfírio.


Poderia haver uma dúvida: é a definição de Porfírio essencial ou descriptiva? Ora, como já vimos, a diferença entre esses dois tipos de definição está em a primeira apontar apenas os aspectos essenciais, e a segunda poder apresentar algumas notas essenciais, mas, sobretudo, consistir em relatar os aspectos accidentais, fazendo, propriamente, uma descripção do  definiens, e como se verá  na  análise da obra aristotélica, diz-se que se  definem as espécies e descrevem-se os indivíduos, pelo menos no que tange à sua individualidade e à sua singularidade, enquanto tomadas como tais.

É fácil, pois, notar-se que a razão de universalidade refere-se ao específico, enquanto a razão de singularidade, ou os aspectos singulares referem-se ao indivíduo. A definição de Porfírio é do primeiro caso, e, portanto, não pode ser considerada uma definição descriptiva, e não o pode, sobretudo, porque define in quid e não apenas in quale.

Alegam alguns que a diferença, sendo predicada da essência, pois constitui a essência da espécie, e sendo ela in quale, predica-se tambem  in quale  da essência do gênero, pois há espécies que têm outras subordinadas, para as quais são seus 
gêneros.

Tomás de Aquino, em seus comentários à  Metafísica  de Aristóteles,  7. lect. 1, observa que a diferença é concebida como modo determinante e actuante; o gênero, como determinável e contraível. Portanto, o que se predica  in quale (que é a predicação da diferença), predica-se  in quid também,  in quale in quid; é uma determinação actual, portanto qualitativa do  quid, e é o que  Aristóteles chama de substância segunda (ousia déutera), pois a substância primeira, logicamente considerada, é o gênero (ousia prote). 

Por isso se diz que a matéria e a forma estão na coisa na proporção de gênero e espécie. A matéria, nos seres corpóreos,  nos aponta o aspecto genérico, e a forma, o seu aspecto específico, para permanecermos dentro da esquemática aristotélica: assim, em vaso-de-barro, de barro é o aspecto genérico, as coisas de barro, e vaso, a forma, a matéria barro informada como vaso. 

Barro, por sua vez, pode ser dividido em sua espécie e em seu gênero, etc. Assim, o gênero diz-se  in quid  e a diferença diz-se  in quale, como o afirma claramente Caietanus, nos comentários às Categorias de Aristóteles, cap. 5.

Deste modo, o gênero, comparado à espécie, é um  quid  mais formal, porque é menos contracto, como expressa Tomás de Aquino in "Summa Theologica, 1.2. q. 18. art. 7. ad 3.Como última prova, tomemos estas palavras de João de São Tomás Log.  II P. Q. VII, art. 1, quando oferece esta predicação: "Branco é colorado", o colorado é tomado substantivamente com respeito a branco, e é adjectivo com respeito a corpo ou sujeito da cor. De onde, com respeito ao sujeito, é uma predicação denominativa e adjectiva; com respeito, contudo, a branco, que  é seu inferior, é, pois, predicação qüididativa em razão da forma importada."

Quanto às expressões "que se predica de muitos especificamente diferentes", não se deve esquecer que um gênero superior contém suas espécies inferiores, que, por sua vez, são gêneros das espécies que lhes estão subordinadas, até alcançarmos um gênero que não é mais subordinado a nenhum outro, que é um gênero supremo, o qual Aristóteles chama de  predicamento  ou  categoria, como há, ainda, uma espécie última, que não subordina nenhuma outra, que é a  espécie especialíssima, que é a das coisas concretas, aquela que só contém os indivíduos. 

Portanto, o gênero não se predica completamente dos indivíduos, mas incompletamente, e também das espécies. Assim, animal, como gênero, predica-se de homem e de cão, que são especificamente diferentes, mas predica-se de Pedro, Paulo e do cavalo Corisco, mas genericamente, não especificamente.

Deste modo, sem dúvida, a definição de Porfírio é boa e adequada, porque é suficiente, breve, clara, recíproca, pois permite a conversão simples (o que se predica essencialmente (in quid) de muitos especificamente diferentes é o gênero) e não contém expressões negativas.


  1. PROBLEMÁTICA EM TORNO DO GÊNERO
Um outro problema que surge é o seguinte: não há meio termo entre substância e accidente, como se verá em Aristóteles, no "Das  Categorias". Conseqüentemente, se a definição de gênero implica a presença da sua diferença, e esta é um accidente, como se pode admitir que da composição de uma substância com um accidente, possa surgir qüididade per se, uma qüididade una per se, que não é nem substância nem accidente? Não há aí nenhum meio termo possível. Uma qüididade não poderia ser só substância nem só accidente. E como não há possibilidade de um meio termo, como se resolver o problema? Se surgisse da combinação nem seria  unum per se substancialmente, nem unum per accidens.

Muitas foram as soluções propostas a esse problema, mas nem todas satisfazem. Se fôssemos relatá-las, prolongaríamos o exame da matéria, sem necessidade para a sua compreensão melhor.

Tais argumentos, porém, são improcedentes, porque a definição do gênero apenas apanha o seu contexto lógico, não o ôntico. Quando se define o gênero, a referência oferecida dirige-se apenas ao qüididativo, e não ao próprio subjectum, tomado em sua concreção. É apenas uma conotação que se faz; é o objecto tomado conotativamente; ou seja, tomado em suas notas essenciais genéricas, e refere-se apenas a isso. 

Quando dizemos que Paulo é um animal racional, tomamo-lo apenas conotativamente (em sentido lógico), e não quanto à sua realidade ôntica, à sua concreção. Estamos, então, numa segunda intenção, pois a primeira é a que se refere ao indivíduo em sua onticidade, Paulo, e segunda intenção porque nos referimos à sua logicidade. Assim já o entendiam João do São Tomás, no lugar anteriormente citado, Caietanus, no cap.  De Genere  e no cap. 4 "De  Ente et Essentia", e também Tomás de Aquino em  Metaph. lect. 9 e em  lect. 8 e em  lect. 4, e ademais em lect. 7 e 1 encontramos, também, a mesma maneira de considerar.

O nome concreto significa o  subjectum in communi, não em sua onticidade. Na verdade, é nossa mente que apanha essas diferenças, que se dão na coisa, tomadascomo  unum per se. Se separamos pela mente o accidente da coisa unum per se, não esqueçamos que o accidente é da coisa, e não a compõe, formando parte do seu compositum. Se assim fosse, o accidente seria uma substância, o que é absurdo. 

Ademais, o accidente não é um ser componente de uma coisa, mas algo que se dá na coisa. Os accidentes são entia quibus, entes de uma coisa, pertencentes à coisa, e não componentes estructurais dessa coisa. Assim, quando predicamos in concreto "Pedro é branco", não predicamos de Pedro ser o branco, mas ter  o branco. Dizemos que tal sujeito está afectado da qualidade branco, e não que o sujeito é o branco. É ele significado pelo branco, sem ser o branco. A brancura, aí predicada, não é tomada em abstracto, não é o mesmo que a brancura, tomada apenas qüididativamente. Diz-se apenas que nele há algo que se pode classificar como brancura. Na verdade, Pedro não é constituído de homem e brancura, não é constituído de duas qüididades, que o compusessem onticamente, mas apenas o que nele há é classificado, logicamente, em homem e brancura. 

Portanto, o unum per se que é Pedro não é uma conjunção de substância e accidente no sentido lógico, mas é Pedro concretamente. Em palavras mais modernas: a onticidade de Pedro não é constituída da logicidade de homem e de branco, não havendo, portanto, nenhuma  validez no problema que inutilmente alguns escolásticos desejaram propor.

Outra série de problemas, em torno deste tema, surge quanto à caracterização do gênero como um todo em relação aos seus inferiores, às espécies, como partes.

E então quatro problemas se apresentam, que provocaram uma grande literatura sobre eles por parte dos escolásticos, cuja temática, problemática e solução, passaremos a compendiar da maneira mais sucinta possível.

Os problemas são: comporta-se uma natureza qualquer, tomada como gênero, como um todo em relação aos seus inferiores? Afirma-se como uma natureza total actual ou apenas parcial? É um todo potencial? Pode-se tomar o gênero da matéria, e a diferença da forma? Num conceito universal, a relação entre o todo e as partes pode ser considerada: a) segundo o modo de conceber ou b) segundo a coisa concebida e significada (1).

Segundo o modo de conceber, o universal tem razão de todo para os seus inferiores como partes, desde que possa ser predicado a esses. Assim, conceptivamente, a espécie homem é uma parte do gênero animal. Se é concebido como parte a respeito dos seus inferiores, como qualquer todo é maior que suas partes, e toda parte é menor que o todo, tal modo não poderia ser concebido a não ser absurdamente: o gênero animal é uma parte da espécie humana. Não pode, pois, o todo ser menor que nenhuma de suas partes, nem nenhuma destas maior que o todo. Portanto, um universal, tomado como todo em relação aos seus inferiores, tomados como partes, tem de comportar-se segundo a lei do todo x parte, isto é, segundo o modo de conceber-se.

Vejamos agora segundo o modo de ser da coisa concebida e significada. Neste caso, todo e parte são considerados como na coisa, a qual nós concebemos e significamos, mas como algo real-realmente nela.

Se examinarmos os primeiros predicáveis, verifica-se que a espécie compõe-se do gênero e da diferença. Estes últimos são partes da espécie, e esta é um todo em relação a eles, pois a espécie é composta do gênero e da diferença. Vê-se, deste modo, que o gênero, enquanto tomado como uma coisa concebida, comporta-se em relação aos seus inferiores como um todo em relação às partes, mas tomado como real-realmente  na  coisa concebida, já se inverte a relação, porque o gênero é parte da espécie, já que ele vai compor esta com a diferença.

Colocado assim o tema, desde logo se torna patente uma problemática a exigir soluções. Na verdade, gênero, diferença,  espécie não são entidades físicas, mas metafísicas; portanto, numa composição, não são propriamente partes, mas, sim, graus.

As partes metafísicas não são coisas distintas componentes de um todo, mas diversas designações da mesma coisa, que mais ou menos determinam, como vemos bem expresso em Tomás de Aquino  in "De Ente et Essentia", in 3 cap. 

Nessas condições, esses graus metafísicos não podem propriamente  comportar-secomo partes e como todo. O homem não é um composto de animal e de racional, mas animal-racional, em que animal e racional não se comportam como partes, mas como  graus metafísicos  do ser humano. 

Deste modo,  gênero  não é uma parte física, mas  metafísica, que se comporta, ora como parte, ora como todo; é todo enquanto modo concebido e parte enquanto na coisa concebida, mas todo e parte sempre metafísicas, ou melhor graus. Assim, animal, no homem, apenas designa a parte sensitiva, não totalmente o homem, mas o que pertence à essência do homem, como também a parte sensitiva do cavalo, etc., ou de um insecto qualquer, sem que tal queira dizer que o animal de um homem e o de um insecto sejam idênticos, mas diz que o homem e o insecto tal são animais, sem que animal tenha aqui uma precisão máxima, o que é melhor expresso pelos conceitos metafísicos de animalidade, que é muito mais abstracto, enquanto animal é mais concreto. Pode-se predicar a animalidade, que é um designatum abstracto aos inferiores; mas in concreto, exige outros exames que faremos mais adiante.

A conclusão que se tira em torno desta problemática, é a seguinte: o gênero comporta-se como todo em relação aos seus inferiores, tomados como  partes, segundo o modo de ser concebido; mas como parte, segundo na coisa concebida e significada. Desse modo, não é na coisa, tomada  in concreto, uma parte  desta, mas um grau metafísico desta; ou seja, do que é predicado da coisa.

Assim,  animal, predicado de homem, tal conceito refere-se à parte sensitiva, ao sensório-motriz, componente desse ser, que envolve não só a forma sensitiva, com exclusão de ulteriores perfeições, mas diz o que é sensitivo nele, como também o que nele há a mais, referindo-se, assim, de certo modo, à sua totalidade.

Esta maneira de colocar a solução deste problema resolve a polêmica que se formava em torno da matéria, pois as posições de um lado ou de outro permaneciam aparentemente insolúveis. O outro problema consiste no seguinte: não procede o gênero em relação aos seus inferiores como um todo potencial, e suas partes apenas como partes potestativas? Desse modo, o gênero seria um todo potencial, oposto ao todo actual, que não explica o todo actualmente constituído, mas uma parte dele, actualizável e contraível; portanto, comportando-se potencialmente. 

Resta agora saber se o gênero, considerado como um ente potencial, procede como todo ou como parte potencial. Por outro lado, sendo o gênero tomado como algo potencial, então o que é que se comporta como actual em relação a ele? As respostas, que se podem oferecer a tais perguntas, com base a resolver os problemas suscitados, são as seguintes: comportando-se o gênero como um ente potencial, é ele contraível por adição de alguma diferença, que não está contraída em acto naquela razão superior, mas em potência. 

Assim, a humanitas, como animalidade-racionalidade, estaria contida, como potência, no gênero animal. Como a racionalidade é uma perfectibilidade superior à animalidade, como poderia o inferior conter o superior? Actualmente seria impossível, porque o menos teria actualmente mais. Poderia contê-la potencialmente e, neste caso, o anterior teria capacidade de actualizar o superior, ou por si ou por outro. Por si, implicaria uma causa eficiente que o realizasse, e uma forma que o informasse, procedendo, então, a sua potenciaildade de dois modos: uma activa (causa eficiente), e uma passiva, que se comportaria como matéria informável. 

Ora, tais operações não se podem emprestar ao gênero, que é um ente de razão, um ente metafísico, mas a outros entes, o que levaria a especulação a afastar-se do campo da Lógica para penetrar, propriamente, no da Metafísica, matéria que não caberia tratar aqui.

Portanto, impõe-se colocar o problema em  outros termos, como faremos a seguir: o gênero é um  quid  potencial em relação à composição metafísica,  porque, em sua qüididade específica, o gênero designa a parte contraível pela diferença, e é assim indeterminado e potencial, enquanto a diferença procede como parte contraente e determinante, já que o que tem a função determinante aqui seria ela. Nesse caso, o gênero procederia como matéria e a diferença como forma, para permanecermos dentro da esquemática aristotélica. Ademais, o gênero comportar-se-ia como matéria em relação ao todo composto, como algo incompleto em relação ao completo. Deste modo, o gênero procederia como um todo potencial ou como uma parte potencial. Ora, como as partes metafísicas não são propriamente partes, mas graus compõem, na verdade, o todo implicitamente, que não é totalmente explicitado por nenhum deles, tomado isoladamente. O gênero, portanto, quando considerado como parte, também é todo, mas um todo que não explicita o todo, mas apenas uma parte ou grau designável e completável por ulterior actualidade, que é dada pela diferença.


É assim um todo potencial que, potencialmente, é parte, quando completável pela diferença. Na espécie, portanto, o gênero é um todo potencial, que é contraído e completado pela diferença, constituindo uma parte ou grau metafísico da totalidade da qüididade específica.

Maior contractibilidade e completude só pode dar-se, posteriormente, por novas diferenças específicas, das espécies, já procedendo como gênero, até chegarmos, finalmente, aos indivíduos, que, com sua diferença individual, darão a máxima contractibilidade ao gênero.

Estas exposições, que escapam à argúcia dos modernos estudiosos da lógica, pouco familiarizados com elas e que até desconhecem o que realizaram os grandes investigadores dialécticos do passado, mostram como a Lógica é rica de problemática.

Vejamos agora, também sucintamente, se o gênero pode ser tomado como matéria, e a forma como diferença. Alguma natureza, como princípio de ser e de operar de uma entidade, é composta de forma e matéria, na concepção hilemórfica do aristotelismo; outras, porém, apenas de forma. Nenhuma, contudo, apenas de matéria, como se verá no exame da Metafísica de Aristóteles. Entre os escolásticos, e seria desnecessário citar as passagens em suas obras, que são inúmeras, muitos aceitam que o gênero, na coisa existente, pode tomar-se como referindo-se à matéria e a diferença à forma.

Mas note-se desde logo que matéria e forma estão na coisa, a primeira como estructura física, e a segunda como estructura formal (ou melhor: eidética), enquanto gênero e diferença são apenas graus metafísicos. Ora, nem a matéria dá graus, nem a forma, mas a forma dá grau à matéria. Ademais, é a forma o princípio da diferença, e não o inverso. A matéria está para a forma numa relação de potência para acto, e aquela é mera potencialidade; portanto, não dá graus. Mas o gênero dá. Logo, o gênero só pode ser tomado não da matéria nua, mas da matéria já informada. À primeira vista, a leitura da obra de Tomás de Aquino parece defen der esta tese, como alegam alguns tomistas, fundando-se no opúsculo 42, cap. 5, e na Summa Theologica I, q. 5o. art. 2 ad 1, etc. Contudo, se melhor lido, e sobretudo compreendido, Tomás de Aquino diz é o seguinte: a matéria, no ser composto, é a raiz da  sua potencialidade, mas o gênero não se refere apenas à matéria nua, mas à matéria somada à forma, intencionalmente referindo-se a um grau metafísico desta. Não diz Tomás de Aquino que é a matéria nua, mas a matéria informada já.

 E também não poderia proceder de outro modo, porque os entes não-materiais, imateriais e espirituais, que também têm graus metafísicos do gênero, não sendo compostos de matéria, não poderiam ter gênero se submetêssemos este a essa condição necessária. O mesmo teríamos que considerar nos accidentes, que, enquanto tais, não têm matéria, o que não cabe tratar aqui, como também não cabe o que referimos aos entes espirituais. Pode-se, contudo, dizer que a matéria, tomada como tal, é indeterminada e indiferente para receber qualquer grau formal, e este é o princípio do gênero.

NOTAS FINAlS SOBRE O GÊNERO

O gênero contém a espécie e as diferenças não actualmente, mas potencialmente. O gênero, enquanto tal, não se predica  per se  da diferença, porque, então, a definiria, e a diferença não participa do gênero, como o demonstra Aristóteles  in 4 Tópicos e, também, na Metafísica, em várias passagens do livro 10. O gênero não se predica das diferenças, mas das espécies. A diferença, que advém ao gênero, não lhe advém como uma parte à parte,  mas como um todo determinado e assinalado a um todo indeterminado e não assinalado. A diferença com o gênero formam unum per se. A distinção entre o gênero e a diferença é apenas de razão. Matéria e forma, num composto, são entes reais. O gênero divide-se por opostas diferenças. Se afirmamos uma, é  porque  há o seu contrário. O gênero, por isso, necessariamente, divide-se em seus contrários. Por essa razão, o gênero deve conter mais de uma espécie, necessariamente, e como conseqüência, não pode haver um  gênero que só tenha,  potencialmente, uma espécie.

E o fundamento está em a matéria de um contrário ter potência para outro contrário.

1)  Estabeleciam os escolásticos uma distinção entre o gênero lógico  e o gênero físico. O primeiro é o  gênero enquanto predicável, e o  segundo, o gênero enquanto é na coisa, ou, em outras palavras: o  primeiro  enquanto A coisa concebida, o segundo enquanto NA coisa concebida. Como vimos, o primeiro está para a espécie na relação de todo e parte, enquanto, o segundo está na  relação de parte e todo. O gênero físico também era chamado  gênero sujeito, e era considerado a coisa física, enquanto apta a receber diversas mutações.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Mário Ferreira dos Santos - ISAGOGE Introdução de PORFÍRIO o Fenício, discípulo de PLOTINO de Licópolis. [...]



Mário Ferreira dos Santos, Isagoge em Porfírio. 

Sendo mister, Crisaórios², para aprender a doutrina das Categorias  de Aristóteles, conhecer o que é gênero, o que é diferença, o que é  5  espécie, o que é próprio (a propriedade), e o  accidente, e que este conhecimento também é necessário para dar as definições³, e  de maneira geral para tudo quanto concerne à divisãoe à demonstração 5, cuja teoria é de grande utilidade, farei para ti uma breve exposição 7, e tentarei em poucas palavras, como numa espécie de introducção, examinar o que disseram os antigos filósofos, abstendo-me de pesquisas muito aprofundadas, e tocando apenas com certa medida as que são mais simples.

De  início, quanto ao que concerne aos  10  gêneros e às espécies, o problema de saber se são realidades subsistentes em si mesmas, ou apenas simples  concepções do espírito 8, e, admitindo serem realidades substanciais, se são corpóreas ou incorpóreas, se, enfim, estão separadas ou se subsistentes apenas nas coisas sensíveis, e junto a elas, evitarei de falar em tais coisas: eis um problema muito profundo, e que exige uma pesquisa totalmente diferente e mais extensa. Tentarei mostrar-te aqui o que os antigos, e, entre eles, sobretudo, os 15 peripatéticos , conceberam de mais racional 10 sobre esses últimos pontos 11 e sobre os que me propus estudar.

1)  Chamado também  Fenício, porque as cidades às quais se atribui  o seu nascimento pertenciam à região chamada Fenícia, hoje propriamente a Síria.

2)  Crisaórios, como vimos na biografia de Porfírio, foi um de seus discípulos, ao qual dirige este trabalho, dando a entender que a matéria já havia sido tratada por ele, pois enumera novamente as razões que levam à necessidade de estudá-la para a melhor compreensão e manuseio da obra de Aristóteles.

3)  Os termos gregos, que correspondem à definição são: horismos, que significa a acção de limitar, de traçar fronteiras, do verbo  horizô, de onde também horizon, horizonte,  horizon kyklos, daí  horos, o limite, de onde a determinação de sentido de uma palavra: definição: horistikôs logos, o logos que define. 

definição, como se verá na obra aristotélica, é um juízo determinativo de máxima determinação. Limita-se, melhormente, um conceito quando se lhe indica o gênero próximo (que, como veremos, determina qüididativamente (essencialmente, mas incompletamente) e a diferença específica (que o delimita qüididativamente e completamente, quando junto com aquele gênero). Tal não quer dizer que seja essa a única espécie de definição. Pode-se definir, também, pelas propriedades, e até pelos accidentes, mas tais definições já  são de menor determinação, chamando-se definição própria, a que define por propriedades, como são freqüentemente as definições das ciências naturais, e  definição accidental, a segunda, que é uma descrição dos accidentes. Muitas das definições da Botânica  e da Zoologia são definições accidentais. Por isso, para se realizarem definições perfeitas, é mister conhecer bem a matéria que a obra passa a estudar.

4)   Sobre a divisão, trataremos nos comentários que seguem a esta parte da obra. Veremos que as diferenças dividem os gêneros em espécies.

5)  Apodeixis, em grego, significa a acção de exibir para fora, acção de fazer, acção de fazer ver, tomando, também, a acepção de expor factos, de publicar e, finalmente, de provar, de demonstrar. Em Aristóteles, significa a prova oposta à inductiva (apagoge), já que a demonstração exige um termo médio, pois mostra  de, de-monstra, cujo termo médio deve favorecer, pela sua melhor clareza, a validez do termo extremo que se procura provar. 

A demonstração é uma argumentação pela qual, por meio de premissas certas e evidentes, deduz-se com certeza uma conclusão. É ela o meio probativo mais eficiente da Ciência, sobretudo da Filosofia, e que Aristóteles examina em seus Segundos Analíticos. Quando se diz que a função da demonstração é provar o  próprio  da  espécie  pela  diferença, não há dúvida que ela também se aplica neste caso, pois uma propriedade só é possível fundada na  diferença, pois esta indica o que caracteriza a  espécie, como veremos mais adiante.

6)  Theôria, em grego, vem de thea, acção de olhar, de contemplar e também lugar de onde se contempla, lugar no teatro onde se ordenam os espectadores, de onde theôrós, o espectador, que também significava o que viaja para ver o mundo, termo similar ao nosso turista, de tour, volta, em francês. Eram chamados  theôrói, usado particularmente pelos atenienses, aqueles deputados enviados para assistirem aos grandes jogos olímpicos ou píticos, etc. Theôria  era, assim, a acção de ver, de observar, de examinar, como também as deputações das cidades gregas, enviadas às festas solenes de Olimpo, de Delfos ou de Corinto, ou aos templos de Zeus, Apolo, etc. No tempo de Péricles, chamava-se theôria  o dinheiro para pagar um lugar no teatro (de  thea). 

Foi com Platão que a palavra tomou a  acepção de contemplação do espírito, meditação, estudo, e por Aristóteles, mais precisamente, a de especulação teórica, oposta à prática. Como as deputações às festas solenes eram ligadas por festões de flores,  theôria  passou, de Platão em diante, a considerar essa nota de conexão, daí a significar toda concepção, meditação ou estudo que liga, costura, alinhava. Aqui significa o estudo, a meditação, a contemplação das regras e normas, que entrosam a demonstração, cujo conhecimento (o da divisão, da definição e o da demonstração) imprescindível, e, sobretudo útil para o 
estudo, é, assim gnôsis, saber.

7)  Uma breve exposição, uma parádosis, a exposição sucinta que realiza um mestre para os discípulos. Porfírio não pretende expor com exaustão a matéria, mas tudo indica que tal matéria já era estudada, exaustivamente, em sua época, e antes até pelos antigos filósofos, como o foi posteriormente, na filosofia renascentista e barroca, por intermédio de escolásticos e não escolásticos, cujos trabalhos chegaram em grande parte até nós, o que compendiaremos, tanto quanto possível, nos comentários às diversas partes desta obra.

8)  Eis um ponto importante, que foi matéria da famosa controvérsia dos universais. São as espécies e os  gêneros realidades subsistentes em si mesmas, sistências per se e in se, o que lhes daria a característica de serem substâncias, ou são apenas entes de razão, noções do espírito, entes esquematizados pela nossa mente. Se são realidades sistentes per se  e  in se  resta saber se são corpóreas  ou incorpóreas. 

Se são tais, se separadas ou não, ou seja: se se dão  per se e separadas das coisas, ou se a sua sistência se dá in re, na coisa, apenas. Considera Porfírio o tema de uma vastidão imensa, o qual exige aprofundados estudos. Ele se exime de fazê-lo, mas, note-se, que reconhece que são de uma extensão e de uma profun-didade que desafia a argúcia, não de um, mas de muitos homens. 

O  texto não é tão anódino como o pretende classificar Gilson, a ponto de não compreender como poderia ele despertar tanto interesse na Idade Média,  de modo que provocou, de Boécio para diante, a famosa disputa  dos universais, que vem até os nossos dias, pois é evidente, que a ela já se haviam devotado filósofos daquela época. 

A disputa entre realistas (que admitem uma  sistência per se e  in se  dos universais) e os nominalistas ( que afirmam que os conceitos universais são apenas palavras que designam as coisas (designatum das coisas), é tema que perdura por séculos e tem hoje alguma revivescência, pela ressurreição de alguns velhos erros facilmente re-futáveis.

Esta matéria pertence, por suas características, à Metafísica, e foi sobretudo examinada pelos escolásticos em suas obras de Crítica.

9)  São os  seguidores de Aristóteles, também chamado o peripatético, de peri, em torno e pathos, paixão, por gostar de dar suas aulas andando.

10)  Logikôteron,  termo formado de  logikôs  e  teron, lógico e cuidado de alguma coisa. Significa maior cuidado lógico e foi muito usado por Aristóteles como sinônimo de dialektikôs, em oposição a  theologikôs, no sentido empregado por Platão, com o significado do estudo, que tende ao exame dos princípios e fins das coisas, sentido também usado por Aristóteles, posteriormente.

O mais racional é o raciocínio lógico, que se processa com os conceitos gerais e não particularizados, como os da ciência particular. Separa-se, também, o raciocínio  physikôs, que se debruça sobre as coisas reais, adequado melhormente à filosofia da natureza. Para Scot, a Metafísica de Aristóteles é mais uma  filosofia da  física  que uma genuína metafísica. Para tornar-se tal, seria mister outras providências, das quais trataremos nos comentários à Metafísica de Aristóteles.

11)  Quer referir-se ao gênero e à espécie em oposição à diferença, ao próprio e ao accidente, do que tratará a seguir:

  1. PROBLEMÁTICA DO PREFÁCIO

A classificação de Porfírio foi aceita, sobretudo pelos medievalistas e pelos escolásticos, como uma boa divisão, e também adequada.

Ora, como a divisão, na Lógica, exige a obediência a certas regras, a primeira pergunta a surgir em torno desta matéria consistiria  em saber se a divisão de Porfírio é obediente a tais regras: em suma, se é realmente boa e adequada.

A divisão, na Lógica, é uma operação que consiste na distribuição de um todo em suas partes. Estas partes chamam-se membros. O todo é o que é um e que pode ser resolvido em muitos (partes, membros). Ora, um todo pode ser ainda  real ou lógico. Real, ou actual, é o um que pode realmente ser dividido (resolvido) em suas partes; lógico, ou também chamado  potencial, é o um que não o é  em si realmente, mas apenas um pela concepção da mente, cujas partes não têm  sistência per se  e  in se. 

No todo actual, as partes são sistentes per se  e in se, independentemente da mente humana. Ora, o objecto da Lógica é  o  ente de razão (ens rationis), portanto, o ente lógico. Os  praedicabilia  de Porfírio são  entes lógicos. E como são tomados como partes de um todo, esse todo é necessariamente lógico.

Como a divisão possui regras, estas devem ser consideradas para que se  possa devidamente classificá-la.
Estas regras são as seguintes:



  • 1)  A divisão deve ser adequada. É mister que todas as partes (membros), tomadas simultaneamente, constituam adequadamente o todo. Uma divisão do  ser vivo,  constituída  de  homens  e  plantas  seria inadequada, por faltarem os animais, os vírus, etc.



  • 2)   Nenhum membro da divisão pode exceder ao todo nem adequar-se totalmente a ele, pois o todo deve sempre ser maior que qualquer uma das suas partes.



  • 3)   Nenhum membro da divisão deve conter algum  outro. Assim, uma divisão do corpo humano em cabeça,  tronco, pernas, pés e dedos, dedos já  estão contido sem pé e pé em pernas.



  • 4)   Deve apoiar-se num fundamento (numa razão,  logos). Assim,  a divisão do homem em brancos, negros e amarelos funda-se na  cor;  a mesma divisão de brancos, negros e engenheiros seria  disparatada  (de  dis  = para cá e para lá,  par, desparelhada).



  • 5)   Não deve ser longa demais, contendo, por exemplo,  subdivisões, ou entes subordinados uns aos outros. 

Em face dessas regras, a pergunta, que exige resposta, é:

A DIVISÃO DE PORFÍRIO É BOA E ADEQUADA?
A resposta implica o exame de muitos aspectos que foram tema de longas especulações pelos escolásticos e não-escolásticos. Se tentássemos compendiar aqui a matéria, prolongaríamos desnecessariamente o tema. Basta-nos, para a melhor inteligência do assunto, compendiarmos as razões principais, as melhor fundadas, que foram propostas através dos tempos.

Essa divisão funda-se na razão da universalidade, porque se trata da divisão dos conceitos universais. Em suma, em face de qualquer conceito, este se refere a um gênero, ou a uma espécie, ou a uma diferença, ou a um próprio, ou a um accidente. Exclui-se, contudo, o conceito individual (o indivíduo), por não ser um conceito universal, portanto não faz ele parte dos conceitos universais.

Esta divisão tem, portanto, uma razão, um  logos analogante, na expressão pitagórico-socrático-platônica.

Na verdade, todos os membros da  dividentia  são predicáveis de muitos e não de um só, pois muitos são os gêneros, as espécies, etc. O que se predica de um só é o conceito individual.

Ademais, essas predicações são formais e não idênticas, porque ao dizermos que X é gênero e Y é gênero, não os identificamos senão formalmente, enquanto gênero: ou seja, em dada  precisão. Essas predicações são, pois,    artificiais, no bom sentido do termo lógico, como se verá ao comentarmos a obra aristotélica, já que o conceito artificial  é o que é construído apenas pela mente, enquanto o experimental  parte da intuição sensível.

Tal não quer dizer que tais predicáveis não tenham nenhum fundamento nas coisas reais, o que se discutirá em outro lugar, já que Porfírio excluiu de sua obra a preocupação em torno da espécie de realidade das suas famosas quinqué vocês.

A predicação é, contudo,  unívoca, e não  análoga, pois predica-se analogamente o que se predica de muitos não simplesmente, mas de um e de outro modo, parcialmente um e parcialmente diverso, como se vê nos comentários às Categorias de Aristóteles. A predicação unívoca pode  convir a muitos, mas sempre pela mesma razão (logos). Ver-se-á naqueles comentários que a predicação análoga não convém nem aos praedicabilia nem aos predicamenta (categorias).

A predicação das  quinqué vocês  (as cinco vozes, as acima citadas) refere-se ao formal, à razão formal da universalidade ou predicabilidade, não propriamente à natureza da coisa, o que não se deve jamais esquecer e que, contudo, muitos esquecem.

A natureza de uma coisa não é facilmente determinada, nem sempre é certa, razão pela qual esta classificação não se adequá à natureza, mas à razão formal. (A natureza é o que constitui o princípio de ser e de operar de uma coisa, a sua emergência como composto hilético e eidético, material e formal).

Que essa divisão é exacta e adequada, demonstra-se ainda por muitas razões, que passamos a compendiar. Há conexão e identidade de um extremo com outro. A identidade ou conexão dos extremos ou é essencial ou accidental, intrínseca ou extrínseca, necessária ou contingente.

Se é  essencial, refere-se apenas à essência, a que cabe na definição, como se verá nos comentários ao  Organon  de Aristóteles, nos volumes posteriores. Ela deve dividir a essência toda e íntegra, ou apenas parcialmente. Como veremos mais adiante, a divisão  íntegra  é a definição específica; se  parcial, é a definição genérica, que é incompleta quanto à qüididade da coisa (a  quidditas  é a razão da essência da coisa, e que transparece, logicamente, na definição); se se refere a uma parte essencial actual, refere-se à  diferença, como veremos, se não convém essencialmente, mas apenas accidentalmente, ao que não é constituinte da essência, mas que provém dos próprios princípios, e tem necessária conexão com estes, temos o próprio; quando convém apenas ao que é extrínseco à essência, e refere-se apenas ao que acontece contingentemente ao indivíduo, temos o accidente.

Damos a seguir uma súmula de razões em favor dessa divisão.

[...]


RAZÕES EM FAVOR DA DIVISÃO
Pode-se perguntar se estes universais são apenas cinco. Justificam os escolásticos o número com as seguintes razões:

Decorre da proporção de um composto substancial de que são eles propriamente predicados, pois o que verdadeiramente se predica de outro deve dizer  totum, já que é impossível predicar a parte do todo. Contudo, um todo pode ser denominado pelo todo, e, também, por uma parte e, deste modo, o predicado pode denominar o todo, ou por uma parte, ou por outra qualquer, ou por uma parte simultaneamente com o todo.


Uma coisa, conseqüentemente, pode receber cinco predicados, se ela é  algo material. Quando se denomina o composto pelo que tem ele de material, diz-se gênero; quando  se  denomina pelo princípio formal, diz-se diferença; quando se considera o  haver  do gênero para com a diferença, unindo matéria e forma, diz-se espécie; se se refere aos accidentes, causados pelos princípios da espécie ou do gênero, diz-se  próprio, e se pelos accidentes causados pelos princípios de um indivíduo, diz-se accidente. Demonstramos de outro modo:


Pode-se dizer que,  ao predicar-se alguma coisa de outra, predica-se  total ou parcialmente. O que se predica totalmente, faz-se  necessariamente  quando é da qüididade da coisa, ou  contingentemente, quando se predica em relação ao todo, não se referindo à sua essência. No primeiro caso, predica-se a  espécie, que é essencial,  necessária  e totalmente, e predica-se a  diferença, que é constituinte da espécie. No segundo caso, predica-se a propriedade, que é um accidente necessário da espécie da coisa à qual se refere, porém, actualmente necessária do sujeito que a represente.


 Quando se predica parcialmente, pode-se predicar ainda essencialmente  ou  não-essencialmente. No primeiro caso, temos o  gênero, quer remoto, quer  próximo, que se refere  à essência  de uma coisa tomada incompletamente, (porque quando se diz que homem é animal, diz-se algo da essência, mas incompletamente).


No segundo, temos o accidente, que somente, como tal, pode ser predicado, tanto da espécie como do sujeito que a represente.


Como estas cinco possibilidades são as únicas gerais que se podem  estabelecer quanto à predicação de qualquer coisa, a divisão porfiriana dos cinco predicados está suficientemente explicada e justificada.


A clareza e a profundidade com que os antigos lógicos escolásticos examinavam os cinco  praedicabilia, manifestam-se na  exposição sucinta que fazemos abaixo, na qual se expressa a nitidez de um pensamento seguro e bem ordenado, tão desconhecido dos modernos lógicos, que julgam haver, nesta matéria, dificuldades invencíveis, razão pela qual preferem abandonar a ordenação clássica, pela equívoca de classe, que não pode, de modo algum, conter a segurança que oferecia a anterior.


O que a outro é ligado (o que de outro se predica) convém-lhe de modo necessário ou  não-necessário; ou seja: contingentemente  ou  accidentalmente: de onde accidente (praedicatio in quale contingens = predicação in quale, contingentemente).


Predica-se  in quale, quando se predica o que não é da essência de uma coisa, apenas aquilo que lhe pode acontecer, não por necessidade essencial, mas o que lhe é  accidental, como o predicar branco para Sócrates, ou alto para Golias, etc. 


Predicar  in quid  é predicar a essência. Assim "Sócrates é um animal racional" é predicar in quid, atribuir a qüididade. O que convém de modo necessário a alguma coisa lhe é atribuído constitutivamente: ou seja, sem o qual não seria nem valeria a cogitação que dela se fizesse, ou, então,  não-constitutivamente; ou seja, enquanto emergente ex constitutivis, emergindo da sua constituição, da sua estructura, como algo que é da sua  propriedade, que lhe  é próprio  (temos, então, a  praedicatio in qualenecessária, uma predicação necessária in quale).


Ora, o que se aplica constitutivamente a alguma coisa, constitui essa coisa ou parcialmente ou totalmente; isto é, especificamente, porque a especifica, de onde espécie (praedicatio in quid complete  = predicação  in quid, completamente realizada). Quando se predica algo parcialmente, mas que lhe é constitutivo, porém de modo indeterminado, predica-se, então, genericamente ou materialmente, de onde  gênero (praedicatio in quid incomplete  = predicação  in quid, incompletamente realizada). 
Mas se for determinadamente, e  de modo que se distinga  de outros,  caracteristicamente ou discretivamente, temos, então, a diferença  específica (praedicatio in quale quid = predicação  in quale (accidental), mas de algo in quid, afirmando a qüididade, essência).


Podemos, agora, seguindo a linha clássica, definir os cinco praedicabilia: 


Espécie, o que de modo necessário convém a alguma coisa, constituindo-a totalmente. Assim, quando se predica de Pedro e Paulo que são  homens, predica-se o mesmo  in quid, distinguindo-os apenas numericamente, enquanto especificamente considerados, sem atender ao que accidentalmente os distingue, ou o que os distingue fora da espécie.

Gênero  é o que convém a algo de modo necessário  in quid que, parcial e indeterminadamente, o constitui. Assim, animal, quando predicado do homem e do cavalo.


Diferença específica  o que de modo necessário (in quid) convém a algo, e que, parcial e determinadamente, o constitui. Assim,  a  racionalidade  convém aos homens, constitui-os e os distingue de outros entes.


Próprio  é o que de modo necessário (in quale in quid) convém a alguma coisa, não a constituindo. Assim a admirabilidade  convém ao homem de modo necessário, porque deflui da própria essência totalmente constituída.



Accidente é o que contingentemente convém a alguma coisa...


RESPONDE-SE A ALGUMAS OBJEÇÕES

Dizem alguns que a espécie não predica totalmente a qüididade de uma coisa, mas apenas parte, pois aquela é parte do indivíduo e não todo o indivíduo, já que não se diz tudo de Paulo ao dizer que é ele animal racional, como é a definição específica dele; igualmente se dá com o gênero, que também é parte do indivíduo.

Mas a espécie implica, na definição, todo o gênero e a diferença, e expressa toda a essência da coisa, como vimos. A qüididade é a essência do indivíduo, e refere-se a este, não como parte deste, porque a essência é tomada universalmente e não se refere à singularidade do indivíduo; portanto,  não é parte integrante deste, como é um braço ou uma perna, mas a totalidade específica que ele tem.

Alegam outros que há predicações que se fazem de muitos e que não se incluem na classificação de Porfírio, como o indivíduo vago: homem, pessoa, etc. Tais predicados dizemos de Pedro e igualmente de Paulo, e não são eles nem gênero, nem espécie. Tal argumento não procede, porque tais termos não se predicam apenas na ordem dos  praedicabilia, mas em várias. Assim,  homem, predicado de Pedro ou de Paulo, predica-se  in quid, quando se refere à classe à qual eles pertencem, e predica-se  in quale  (qualitativamente), quando nos referimos ao seu modo de individuação, que já pertence aos accidentes. Tal predicação, pois, não se reduz a um só predicável, mas a muitos.


Aqueles que alegam que a morte e a existência não se classificam em tais predicáveis, porque não se predicam essencialmente, por não pertencerem à qüididade da coisa, nem serem propriedades, porque não dimanam de princípios 
intrínsecos, nem accidentes, porque estes, enquanto tais, nem ao se aproximarem, nem ao se afastarem provocam a corrupção do sujeito, como é próprio dos accidentes, esquecem-se que a morte é realmente um accidente que não se dá sem aproximação da corrupção física do sujeito, da sua existência.

Outros dizem que não há necessidade de cinco predicáveis, por uma razão muito simples: o que predicamos de uma coisa ou se predica essencialmente ou se predica accidentalmente, portanto, não há lugar para a divisão proposta.


A divisão é de certo  modo justa; mas quando predicamos essencialmente, predicamos ou completamente (espécie) ou incompletamente (gênero), e à proporção que os gêneros são mais remotos, a incompletude é maior. O mesmo se dá com a diferença, que pode ser de uma espécie superior, gênero de uma subalterna, como a diferença específica de animal, constituinte da espécie, que é gênero de homem, como é fácil ver-se. Portanto, a predicação essencial pode ser completa e incompleta, com a espécie e gênero, e estes incluem suas diferenças específicas, enquanto são espécies (que não o é o gênero supremo, como veremos mais adiante). Também quando predicamos algo accidentalmente, predicamo-lo como accidente da espécie ou do gênero, ou apenas do indivíduo.


Ademais, o exame que expusemos acima, extraído de nosso Métodos Lógicos e Dialécticos (4.ed.), justifica suficientemente a divisão de Porfírio, e demonstra a sua validez.


Outros alegam que tais predicáveis, na verdade, são apenas gêneros, porque se predicam de muitas espécies de gêneros, de espécies, espécies de propriedades, espécies de accidentes. Portanto, os predicáveis, na verdade, são gêneros apenas, e a 
divisão de Porfírio é apenas subordinada e não primacial. Estas razões são improcedentes, porque há categórica distinção entre o gênero supremo e a espécie especialíssima, como veremos. Ademais, a universalidade não é a nota única da essencialidade do gênero, nem os predicáveis são apenas genéricos porque têm essa nota de universalidade, pois já vimos que são universais. As distinções já apontadas são suficientes para justificar a diferença de predicação, já que se deve dar nomes distintos ao que é distinto em natureza. 

Caracteriza a universalidade o ser  um em muitos, e cada uma dessas divisões  é  um em muitos, pois é um que se predica de muitos. Outrossim, é o que se vê da própria função do predicado e a do sujeito, porque se o que se predica é um de muitos ou em muitos, o sujeito procede ou se comporta como um em muitos, mas como um que recebe uma predicação. Os 
predicáveis não se distinguem entre si apenas em número, mas segundo a intencionalidade que se lhes empresta. 

A  propriedade  e o  accidente  predicam-se secundum quid; ou seja, relativamente ex parte rei, por parte da coisa, tomada na sua individualidade, e não se univoca com a coisa, pois a sua ausência não negaria a coisa.



SÚMULA DO CAPITULO 1. (DO GÊNERO)
Neste capítulo, propõe Porfírio três acepções do termo GÊNERO (em gr. GENÓS).

  • 1)   É a multidão de seres humanos provenientes de um progenitor, ou descendentes de uma pátria comum. Assim os heráclidas, que provêm de Hércules, os romanos, de Rômulo.



  • 2)  O que provêm de um parente ou da pátria, como Píndaro, do gênero Tebanos; Platão do gênero ateniense, etc. Gênero é, então, o princípio da geração de quem quer que seja.



  • 3)  É o predicável, acepção que lhe dão os filósofos.
Como predicável, GÊNERO  é descrito por Porfírio:  o que é predicado essencialmente de muitas espécies diferentes, como animal, que é predicado da espécie humana e da espécie eqüina.

   Finalmente, distingue gênero do indivíduo, porque este se predica de um só; enquanto gênero se diz de muitas espécies, e não de muitos indivíduos, pois este aspecto é que caracteriza a espécie. O próprio é o que se diz da espécie e também dos indivíduos, como "capaz de admirar-se", que se diz de cada homem, Pedro, Paulo, etc. Distingue-se da diferença e do accidente porque estes se predicam IN QUALE e não IN QUID, muito embora a diferença se predique IN QUALE IN QUID, pois refere-se a um QUALE do QUID, como veremos mais adiante.