sexta-feira, 24 de julho de 2015

Mário Ferreira dos Santos - CAPÍTULO 1 DO GÊNERO.


CAPÍTULO 1
DO GÊNERO

Tudo leva a indicar que nem o gênero nem a espécie são termos simples 1. O gênero, com efeito, diz-se, desde logo, de uma colecção de indivíduos que se comportam de certa maneira em relação a um único ser e 20 em relação entre si. É em virtude dessa significação que se fala da raça dos Heráclidas, pelo facto de sua maneira de comportar-se 2 e de ter uma origem única, a saber, Hércules, e usa-se também de todos aqueles que têm entre si um certo parentesco, a partir do antepassado comum, e o nome que se lhes dá separa-os radicalmente de todas as outras raças.

Gênero é tomado, ainda, em outro sentido: 2  é o ponto de partida 3 da geração de cada coisa, quer se trate do próprio gerador, quer do lugar em que uma coisa foi engendrada.  Assim, dizemos que Orestes surgiu da raça de Tântalo, e Hílis, da de Hércules; dizemos, ainda, que Píndaro é da raça dos Tebanos, e Platão, da dos Atenienses, pois a pátria é também uma espécie de princípio da geração de cada coisa, do mesmo modo que o é o pai"4.

5  Este, parece, é o sentido mais corrente: são chamados Heráclidas os descendentes da raça de Hércules, e Cecrópidas, os descendentes de Cécrops, assim que seus aparentados.

Chamou-se, de início, gênero, o ponto de partida da geração de cada coisa, depois, mais tarde, a multidão dos que provêm de um só princípio, Hércules, por exemplo, 5; ao deliitá-lo e ao separá-lo dos outros, dizemos que esse grupo é integralmente da raça dos Heráclidas.

10  Há, ainda, um outro sentido de gênero, é o sob o qual está ordenada a espécie, e esse nome certamente lhe foi dado por sua semelhança com os casos precedentes: o gênero, nesse sentido, com efeito, é uma sorte de princípio para todas as espécies que lhe estão subordinadas, e parece conter também toda a multidão classificada sob ele 6.

O gênero, é, pois, tomado em três sentidos,  15  e é o terceiro o do qual tratam os filósofos: foi o que eles descreveram quando definiram o  gênero ao dizer que ele é o  atributo essencial (in quid) 7 aplicável a uma pluralidade de  coisas, que diferem entre si especificamente (no seu quid), como animal, por exemplo.

Com efeito, entre os atributos, uns se dizem apenas de um só ser, como o são os indivíduos 8, por exemplo, Sócrates, este homem aqui, esta coisa aqui; os outros dizem-se de diversos seres, e é o caso dos gêneros, das espécies, das diferenças, dos próprios e dos accidentes, que têm caracteres comuns e não particulares a um indivíduo.

20 O gênero, é,  por exemplo, animal; a espécie, homem; a diferença, racional; o  próprio,  faculdade de rir;  accidente,  branco, negro,  o "sentar-se". Assim, pois, os gêneros diferem, de um lado, dos atributos aplicáveis a um único indivíduo,  em serem atribuídos a uma pluralidade; diferem, também, por outro lado, dos atributos aplicáveis a uma  pluralidade, a saber,  25  as espécies, pelo facto das espécies, sendo totalmente atribuídas a diversos indivíduos, não o serem, contudo, senão a indivíduos, que não diferem entre si especificamente, mas apenas numericamente.

É assim que homem, que é uma espécie, é atribuído a Sócrates e a Platão, os quais diferem um do outro, não em espécie, mas em número, enquanto animal, que é um gênero, é atribuído ao homem, ao boi e ao cavalo, os  3  quais diferem entre si pela espécie, e não apenas pelo número.

O gênero difere do próprio, por sua vez, por ser este atribuído a uma única espécie, da qual é próprio e aos indivíduos classificados sob essa espécie; por exemplo, a faculdade de rir é próprio só do homem e dos homens particulares; o gênero, ao contrário, não é atribuído a uma única espécie, mas a uma 5 multiplicidade de termos que diferem em espécie.

O gênero difere, por fim, da diferença, assim como dos accidentes comuns, embora as diferenças e os accidentes comuns sejam atribuídos a termos múltiplos, e que diferem especificamente, por não serem, contudo, atribuídos essencialmente.

Com efeito, se perguntamos a qual termo diferença e accidente são atribuídos, dizemos que eles são atribuídos não essencialmente, 10, mas, sim, qualitativamente; se se pergunta, por exemplo, qual (qualis) é o homem, dizemos que ele é racional, qual é o corvo, dizemos que é negro; no primeiro caso, racional é uma diferença, e, no segundo, o negro é um accidente. Mas quando se pergunta o que é (quid) o homem, respondemos que é um animal, e animal como dissemos, é gênero do homem.

Conclusão: ser afirmado de uma pluralidade de termos é o que distingue o gênero dos predicados individuais atribuídos a um único indivíduo; ser afirmado de termos especificamente diferentes é o que o distingue dos termos atribuídos como espécies ou como próprios; enfim, ser atribuído essencialmente é o que o separa das diferenças e dos accidentes comuns, que são atribuídos aos sujeitos, dos quais são respectivamente atributos, não em essência, mas em qualidade, ou numa relação qualquer. A noção de gênero, tal como 20 acabamos de descrever, não peca, contudo, nem por excesso, nem por defeito, de ciência 9.

1)  Simples, aplôs legesthai, em que o advérbio ap1ôs  equivale ao conceito latino de simp1ex.

2)  Skesis, em gr., relação, modo de comportar-se em face de outro.

3) Arkhê é o princípio, ponto de partida. É distinto de stoikheion, que é elemento, causa imanente. A causa é um princípio, tomado genericamente, não, porém, todo princípio é causa. O ponto é princípio da linha, não, porém, sua causa.

4)  Diz-se mais a mãe pátria.

5)  Hércules, como origem, é  genos, genus, em latim, e genos é o conjunto de todos os seus descendentes.

6)  Hércules é o princípio dos Heráclidas.

7)  Kathegorein, significa afirmar, atribuir, mas aqui a atribuição é essencial, en tô ti esti  de Aristóteles, cujo  to ti equivale ao  qui est latino, a essência, a qüididade, que equivale muitas vezes à primeira categoria, a substância,  ousia, como veremos no "Das Categorias", de Aristóteles.

8)  Tá átoma, os que não são divididos, ou não-divididos, impartíveis, insecáveis, equivale, aqui, a indivíduos, os que não contêm gêneros nem diferenças que lhes sejam inferiores, como veremos.

9)  Condições exigidas pelas regras da definição, como analisamos nos comentários, pois a boa e adequada definição deve conter todo o definido e nada mais que o definido.

§

SÍNTESE DA IDÉIA DE GÊNERO

A definição do gênero é uma definição descriptiva e não essencial. Sua essência consiste na razão de universalidade referente às espécies, que ele contém, que a ele estão subordinadas, distintas in quid  (segundo a qüididade de cada uma).

É um todo potencial, mas indeterminadamente, e parte potencial, porque se contrai pela diferença na parte qüididativa da espécie.

Proporcionalmente, o gênero refere-se à matéria de uma coisa, como a diferença refere-se à forma. Se o gênero constitui um todo, qualquer todo não constitui um gênero. A diferença é que dá a determinabilidade ao gênero, que, enquanto tal, é indeterminado, e predica-se in quid, incompletamente, de uma coisa.

Nas especulações filosóficas sobre o sentido lógico do gênero, conclui-se, quando se filosofa com sanidade, que o gênero contém as diferenças  potencialmente, não actualmente. A espécie é,  in concreto,  o composto de  matéria  e  forma, por isso diz-se que o gênero refere-se à matéria, e a diferença à espécie. Assim, animal, no homem, é  matéria, e a animalidade, o  gênero. Racional é a  diferença  de que racionalidade  é a forma.  

Homem é, pois, a espécie, porque reúne ambas. Assim, homem pode ser olhado in concreto e in abstracto. O gênero contém, potencialmente, as diferenças, não actualmente. Assim, na Lógica, animal contém potencialmente a racionalidade. O gênero as contém, indeterminadamente, enquanto a espécie as contém determinadamente. A espécie está contida, implicitamente, no gênero, como parte. A espécie é um todo determinado de um todo indeterminado, e não significado, mas implicitamente contido naquele. Deste modo, a espécie perfecciona o gênero, porque actualiza uma de suas possibilidades, pois a racionalidade está implicitamente contida in potentiam no gênero animal. Como as diferenças podem ser múltiplas e heterogêneas, e são típicas das espécies, o gênero não se pode predicar delas. Assim, não se pode predicar animal de racional, dizendo-se: o que é racional é animal, porque racional não está contido, actualmente, em animal. Também a diferença  não se pode predicar do gênero. Deste modo, não se pode dizer: é animal, logo é racional, porque não se pode ainda dizer que animal é racional. E a razão é porque o que é predicado per se de alguma coisa deve estar contido actualmente em sua essência, já que a essência de uma coisa exige o que é actual. Se o gênero se predicasse per se das diferenças, as espécies seriam todas idênticas, pois o que as distingue é a diferença.


 Mas o gênero predica-se per se da  espécie, mas esta contém a diferença, e o gênero é predicado incompletamente daquela. Pode-se, contudo, predicar, sim, per accidens: algum racional é animal, o que é válido.

Que se pode tomar a matéria de uma coisa como gênero, e a diferença  como forma, justifica-se pelas seguintes razões: se há coisas que não são compostas de matéria e forma, mas apenas de potência e acto, estas podem ser consideradas como gênero e espécie, porque a potência refere-se à genereidade, e o acto à formalidade. Nem tudo quanto é assim tem matéria e forma, ou matéria informada. Mas tudo quanto tem matéria e forma tem genereidade e formalidade. Tudo quanto é composto tem uma determinabilidade, uma natureza determinada per se, à qual podemos, intencionalmente, chamar gênero e diferença. 

Toda coisa, que tem uma qüididade, tem-na  per se, e pode ser classificada no predicamento aristotélico de substância.

A diferença na espécie não advém como uma parte da parte, mas um todo determinado e assinalado a um todo indeterminado, e não assinalado. Assim, logicamente, podem ser tomados como gênero e diferença.

Contudo, gênero e diferença não são considerados como uma unidade per accidens, mas como uma unidade per se. Não há o gênero sem a espécie.

Não há animal que não seja homem, cavalo, boi, etc. Animal é sempre, especificamente, este ou aquele. A diferença não é algo que advém per accidens ao gênero, mas per se.

A matéria com a forma (informada) constitui unum per se. Deste modo, vê-se que o gênero tem a razão da matéria, e a diferença a razão da forma. Como entes de razão, gênero e diferença não se distinguem real-realmente, mas apenas por 
distinção de razão. A matéria e a forma são partes  reais-reais (in concreto), mas gênero e diferença são partes de razão.

A diferença não é um accidente que ocorre ao gênero, como o accidente que ocorre ao indivíduo. Este último não forma unum per se com o subjecto, no qual inhere, mas a diferença forma unum per se; por isso nós podemos distingui-los apenas pela razão, já que são entes de razão, como o são todos os entes lógicos.

O nome, que damos às coisas, é um sinal intelectual do conceito. Tem ele, como função, referir-se universalmente à intencionalidade. O que o nome significa é a concepção intelectual, é algo que está na mente, que pode representar, adequadamente ou não, o que está fundamentalmente na coisa, já que nossos conceitos são proporcionados à nossa mente, e dada a imperfeição  dela, não se identificam com o que é na coisa, mas apenas intencionalmente. Assim, quando conceituamos homem como animal racional, notamos que nele há algo indeterminadamente em comum com os animais, e determinadamente o que tem de diferente e próprio, a racionalidade. Nem tudo quanto está no homem é representado determinadamente por animal, mas indeterminadamente; enquanto, pela racionalidade, é representado determinadamente. São estas razões que demonstram que a distinção que há entre gênero e diferença é apenas de razão.

O animal, que está no homem, não é o mesmo que está no cavalo, no leão, se os tomarmos in concreto.

Como o gênero predica-se in quid incompletamente de um ser, não lhe corresponde, como tal, nenhum indivíduo subsistente, porque estes representam a espécie especialíssima, como cão, casa, árvore, homem.

Os gêneros são divididos pelas diferenças opostas, que vão constituir as suas espécies. 

COMENTÁRIOS AO CAPÍTULO 1

Define Porfírio como gênero "o atributo principal aplicável a uma pluralidade de coisas, que diferem entre si especificamente", no seu  quid, no que constitui o seu quid (a sua espécie). O primeiro problema que surge aqui é saber se essa definição é boa.

Desdobremos os pontos principais daquela. 1)  atributo predicável de muitos, portanto sua universalidade é manifesta; 2)  de muitos, mas especificamente distintos, o que torna o conceito atribuído um conceito  genérico, pois o gênero contém as suas espécies, dada a sua genereidade (genereitas); 3)  predicado in quid, en tô ti esti, que é a sua ratio praedicandi. É, pois, um atributo essencial, e este é predicado de todos in quid, de todos os indivíduos que entram na extensão do conceito.

Torna-se, agora, de máxima importância examinar os termos "de muitos especificamente diferentes", e o significado de essencial (in quid) (en tô ti esti).

O que é genérico implica subordinados que tenham entre si algo em comum e algo distinto. Mas o que têm em comum não pode ser algo meramente accidental, contingente, que pode ter ou não, sem deixar de ser o que é, mas, sim, algo sem o qual o ente deixa de ser o que é para ser outro, algo que o altera fundamentalmente.

Ao que constitui essa estructura eidética do ser chama-se essência formal na linguagem aristotélica, e não é algo meramente accidental, com o se verá ao examinar o accidente, mas algo que é intrínseco e actual, e imprescindível da coisa, sob pena de deixar ela de ser o que é para ser outra coisa. Mas tais coisas, que se dizem estar incluídas no gênero, que participam da mesma essencialidade, possuem, contudo, também em sua essência, algo que as distingue entre si.

De modo que aquele aspecto, que é geral, generalis, constitui o gênero, e o que é deste e daquele em sua heterogeneidade é constituinte de sua especificidade. Assim, o gênero possui  os seus inferiores, as espécies a ele subordinadas. Deste modo, o
indivíduo abstracta-se no gênero e  contracta-se  na espécie. 

Conseqüentemente, a espécie é mais rica de notas que o gênero, que, por ser geral, não inclui o que é específico senão potencialmente e não actualmente como já o acentuava Santo Alberto in De Praedicabilibus, tract. 3. c. 4. Ora, jamais se deve esquecer que, para Aristóteles, como para os escolásticos, tanto gênero como espécie são entes de razão, e não entidades sistentes de per se e in se, separadas ou não das coisas.

Predicar in quid significa predicar essencialmente, e distingue-se da predicação in quale, que é a predicação accidental, do que é accidental. Assim, a predicação in quid é uma predicação substantiva, enquanto a predicação in quale é uma predicação adjectiva, como nos mostra Tomás de Aquino em seu "Summa totius Logicae Aristotelis". A diferença, como racional no homem, é algo qualitativo, é um qualis portanto, e predicá-lo do homem é predicá-lo  in quale, mas essa qualidade é algo que decorre da essência; portanto, é um  in quale in quid. E por que tal se dá? A razão é simples. A diferença está em relação ao gênero numa relação de posterior a anterior. Há prioridade do gênero e posterioridade da diferença. A diferença não constitui o que é primariamente fundamental da essência, mas algo que advém ao gênero, como algo que, potencialmente, ele contém, cuja actualidade vai constituir a espécie. A diferença, desse modo, contrai o gênero, e a espécie é o gênero contraído pelo modo qualitativo da diferença, que é um adjacente. É o que expressa Aristóteles nos Tópicos 7. cap. 3 (153 a 15), pois, no modo de predicação, o gênero predica-se in quid e a diferença in quale.

A diferença, predicando-se no gênero, não sé o contrai na espécie, como o completa, porque o gênero, tomado apenas em sua  genereidade  predica-se incompletamente de alguma coisa. Por ter o gênero, em função do seu gênero próximo (que o subordina), a função de espécie em relação àquele, há, finalmente, como veremos em breve, uma espécie que não tem mais espécies subordinadas, uma espécie que é apenas espécie, que é especialissimamente espécie, e que se chama espécie especialíssima, como o são aquelas que se predicam dos entes concretos, como casa, árvore, mar, etc.

Deste modo, nota-se que, acrescentando-se a predicação da diferença, o gênero se contrai, ou melhor,  é tomado contraidamente na espécie, que completa em acto o que naquele estava apenas potencialmente, tornando-se, assim, um modo substantivo e  in quid  de predicar. Assim, "predicar-se in quid  (essencialmente) de muitos diferentes especificamente", vê-se que tal é contraível pela diferença, contida potencialmente, que, deste modo, mais o especifica, o que mostra ser boa a definição de Porfírio.


Poderia haver uma dúvida: é a definição de Porfírio essencial ou descriptiva? Ora, como já vimos, a diferença entre esses dois tipos de definição está em a primeira apontar apenas os aspectos essenciais, e a segunda poder apresentar algumas notas essenciais, mas, sobretudo, consistir em relatar os aspectos accidentais, fazendo, propriamente, uma descripção do  definiens, e como se verá  na  análise da obra aristotélica, diz-se que se  definem as espécies e descrevem-se os indivíduos, pelo menos no que tange à sua individualidade e à sua singularidade, enquanto tomadas como tais.

É fácil, pois, notar-se que a razão de universalidade refere-se ao específico, enquanto a razão de singularidade, ou os aspectos singulares referem-se ao indivíduo. A definição de Porfírio é do primeiro caso, e, portanto, não pode ser considerada uma definição descriptiva, e não o pode, sobretudo, porque define in quid e não apenas in quale.

Alegam alguns que a diferença, sendo predicada da essência, pois constitui a essência da espécie, e sendo ela in quale, predica-se tambem  in quale  da essência do gênero, pois há espécies que têm outras subordinadas, para as quais são seus 
gêneros.

Tomás de Aquino, em seus comentários à  Metafísica  de Aristóteles,  7. lect. 1, observa que a diferença é concebida como modo determinante e actuante; o gênero, como determinável e contraível. Portanto, o que se predica  in quale (que é a predicação da diferença), predica-se  in quid também,  in quale in quid; é uma determinação actual, portanto qualitativa do  quid, e é o que  Aristóteles chama de substância segunda (ousia déutera), pois a substância primeira, logicamente considerada, é o gênero (ousia prote). 

Por isso se diz que a matéria e a forma estão na coisa na proporção de gênero e espécie. A matéria, nos seres corpóreos,  nos aponta o aspecto genérico, e a forma, o seu aspecto específico, para permanecermos dentro da esquemática aristotélica: assim, em vaso-de-barro, de barro é o aspecto genérico, as coisas de barro, e vaso, a forma, a matéria barro informada como vaso. 

Barro, por sua vez, pode ser dividido em sua espécie e em seu gênero, etc. Assim, o gênero diz-se  in quid  e a diferença diz-se  in quale, como o afirma claramente Caietanus, nos comentários às Categorias de Aristóteles, cap. 5.

Deste modo, o gênero, comparado à espécie, é um  quid  mais formal, porque é menos contracto, como expressa Tomás de Aquino in "Summa Theologica, 1.2. q. 18. art. 7. ad 3.Como última prova, tomemos estas palavras de João de São Tomás Log.  II P. Q. VII, art. 1, quando oferece esta predicação: "Branco é colorado", o colorado é tomado substantivamente com respeito a branco, e é adjectivo com respeito a corpo ou sujeito da cor. De onde, com respeito ao sujeito, é uma predicação denominativa e adjectiva; com respeito, contudo, a branco, que  é seu inferior, é, pois, predicação qüididativa em razão da forma importada."

Quanto às expressões "que se predica de muitos especificamente diferentes", não se deve esquecer que um gênero superior contém suas espécies inferiores, que, por sua vez, são gêneros das espécies que lhes estão subordinadas, até alcançarmos um gênero que não é mais subordinado a nenhum outro, que é um gênero supremo, o qual Aristóteles chama de  predicamento  ou  categoria, como há, ainda, uma espécie última, que não subordina nenhuma outra, que é a  espécie especialíssima, que é a das coisas concretas, aquela que só contém os indivíduos. 

Portanto, o gênero não se predica completamente dos indivíduos, mas incompletamente, e também das espécies. Assim, animal, como gênero, predica-se de homem e de cão, que são especificamente diferentes, mas predica-se de Pedro, Paulo e do cavalo Corisco, mas genericamente, não especificamente.

Deste modo, sem dúvida, a definição de Porfírio é boa e adequada, porque é suficiente, breve, clara, recíproca, pois permite a conversão simples (o que se predica essencialmente (in quid) de muitos especificamente diferentes é o gênero) e não contém expressões negativas.


  1. PROBLEMÁTICA EM TORNO DO GÊNERO
Um outro problema que surge é o seguinte: não há meio termo entre substância e accidente, como se verá em Aristóteles, no "Das  Categorias". Conseqüentemente, se a definição de gênero implica a presença da sua diferença, e esta é um accidente, como se pode admitir que da composição de uma substância com um accidente, possa surgir qüididade per se, uma qüididade una per se, que não é nem substância nem accidente? Não há aí nenhum meio termo possível. Uma qüididade não poderia ser só substância nem só accidente. E como não há possibilidade de um meio termo, como se resolver o problema? Se surgisse da combinação nem seria  unum per se substancialmente, nem unum per accidens.

Muitas foram as soluções propostas a esse problema, mas nem todas satisfazem. Se fôssemos relatá-las, prolongaríamos o exame da matéria, sem necessidade para a sua compreensão melhor.

Tais argumentos, porém, são improcedentes, porque a definição do gênero apenas apanha o seu contexto lógico, não o ôntico. Quando se define o gênero, a referência oferecida dirige-se apenas ao qüididativo, e não ao próprio subjectum, tomado em sua concreção. É apenas uma conotação que se faz; é o objecto tomado conotativamente; ou seja, tomado em suas notas essenciais genéricas, e refere-se apenas a isso. 

Quando dizemos que Paulo é um animal racional, tomamo-lo apenas conotativamente (em sentido lógico), e não quanto à sua realidade ôntica, à sua concreção. Estamos, então, numa segunda intenção, pois a primeira é a que se refere ao indivíduo em sua onticidade, Paulo, e segunda intenção porque nos referimos à sua logicidade. Assim já o entendiam João do São Tomás, no lugar anteriormente citado, Caietanus, no cap.  De Genere  e no cap. 4 "De  Ente et Essentia", e também Tomás de Aquino em  Metaph. lect. 9 e em  lect. 8 e em  lect. 4, e ademais em lect. 7 e 1 encontramos, também, a mesma maneira de considerar.

O nome concreto significa o  subjectum in communi, não em sua onticidade. Na verdade, é nossa mente que apanha essas diferenças, que se dão na coisa, tomadascomo  unum per se. Se separamos pela mente o accidente da coisa unum per se, não esqueçamos que o accidente é da coisa, e não a compõe, formando parte do seu compositum. Se assim fosse, o accidente seria uma substância, o que é absurdo. 

Ademais, o accidente não é um ser componente de uma coisa, mas algo que se dá na coisa. Os accidentes são entia quibus, entes de uma coisa, pertencentes à coisa, e não componentes estructurais dessa coisa. Assim, quando predicamos in concreto "Pedro é branco", não predicamos de Pedro ser o branco, mas ter  o branco. Dizemos que tal sujeito está afectado da qualidade branco, e não que o sujeito é o branco. É ele significado pelo branco, sem ser o branco. A brancura, aí predicada, não é tomada em abstracto, não é o mesmo que a brancura, tomada apenas qüididativamente. Diz-se apenas que nele há algo que se pode classificar como brancura. Na verdade, Pedro não é constituído de homem e brancura, não é constituído de duas qüididades, que o compusessem onticamente, mas apenas o que nele há é classificado, logicamente, em homem e brancura. 

Portanto, o unum per se que é Pedro não é uma conjunção de substância e accidente no sentido lógico, mas é Pedro concretamente. Em palavras mais modernas: a onticidade de Pedro não é constituída da logicidade de homem e de branco, não havendo, portanto, nenhuma  validez no problema que inutilmente alguns escolásticos desejaram propor.

Outra série de problemas, em torno deste tema, surge quanto à caracterização do gênero como um todo em relação aos seus inferiores, às espécies, como partes.

E então quatro problemas se apresentam, que provocaram uma grande literatura sobre eles por parte dos escolásticos, cuja temática, problemática e solução, passaremos a compendiar da maneira mais sucinta possível.

Os problemas são: comporta-se uma natureza qualquer, tomada como gênero, como um todo em relação aos seus inferiores? Afirma-se como uma natureza total actual ou apenas parcial? É um todo potencial? Pode-se tomar o gênero da matéria, e a diferença da forma? Num conceito universal, a relação entre o todo e as partes pode ser considerada: a) segundo o modo de conceber ou b) segundo a coisa concebida e significada (1).

Segundo o modo de conceber, o universal tem razão de todo para os seus inferiores como partes, desde que possa ser predicado a esses. Assim, conceptivamente, a espécie homem é uma parte do gênero animal. Se é concebido como parte a respeito dos seus inferiores, como qualquer todo é maior que suas partes, e toda parte é menor que o todo, tal modo não poderia ser concebido a não ser absurdamente: o gênero animal é uma parte da espécie humana. Não pode, pois, o todo ser menor que nenhuma de suas partes, nem nenhuma destas maior que o todo. Portanto, um universal, tomado como todo em relação aos seus inferiores, tomados como partes, tem de comportar-se segundo a lei do todo x parte, isto é, segundo o modo de conceber-se.

Vejamos agora segundo o modo de ser da coisa concebida e significada. Neste caso, todo e parte são considerados como na coisa, a qual nós concebemos e significamos, mas como algo real-realmente nela.

Se examinarmos os primeiros predicáveis, verifica-se que a espécie compõe-se do gênero e da diferença. Estes últimos são partes da espécie, e esta é um todo em relação a eles, pois a espécie é composta do gênero e da diferença. Vê-se, deste modo, que o gênero, enquanto tomado como uma coisa concebida, comporta-se em relação aos seus inferiores como um todo em relação às partes, mas tomado como real-realmente  na  coisa concebida, já se inverte a relação, porque o gênero é parte da espécie, já que ele vai compor esta com a diferença.

Colocado assim o tema, desde logo se torna patente uma problemática a exigir soluções. Na verdade, gênero, diferença,  espécie não são entidades físicas, mas metafísicas; portanto, numa composição, não são propriamente partes, mas, sim, graus.

As partes metafísicas não são coisas distintas componentes de um todo, mas diversas designações da mesma coisa, que mais ou menos determinam, como vemos bem expresso em Tomás de Aquino  in "De Ente et Essentia", in 3 cap. 

Nessas condições, esses graus metafísicos não podem propriamente  comportar-secomo partes e como todo. O homem não é um composto de animal e de racional, mas animal-racional, em que animal e racional não se comportam como partes, mas como  graus metafísicos  do ser humano. 

Deste modo,  gênero  não é uma parte física, mas  metafísica, que se comporta, ora como parte, ora como todo; é todo enquanto modo concebido e parte enquanto na coisa concebida, mas todo e parte sempre metafísicas, ou melhor graus. Assim, animal, no homem, apenas designa a parte sensitiva, não totalmente o homem, mas o que pertence à essência do homem, como também a parte sensitiva do cavalo, etc., ou de um insecto qualquer, sem que tal queira dizer que o animal de um homem e o de um insecto sejam idênticos, mas diz que o homem e o insecto tal são animais, sem que animal tenha aqui uma precisão máxima, o que é melhor expresso pelos conceitos metafísicos de animalidade, que é muito mais abstracto, enquanto animal é mais concreto. Pode-se predicar a animalidade, que é um designatum abstracto aos inferiores; mas in concreto, exige outros exames que faremos mais adiante.

A conclusão que se tira em torno desta problemática, é a seguinte: o gênero comporta-se como todo em relação aos seus inferiores, tomados como  partes, segundo o modo de ser concebido; mas como parte, segundo na coisa concebida e significada. Desse modo, não é na coisa, tomada  in concreto, uma parte  desta, mas um grau metafísico desta; ou seja, do que é predicado da coisa.

Assim,  animal, predicado de homem, tal conceito refere-se à parte sensitiva, ao sensório-motriz, componente desse ser, que envolve não só a forma sensitiva, com exclusão de ulteriores perfeições, mas diz o que é sensitivo nele, como também o que nele há a mais, referindo-se, assim, de certo modo, à sua totalidade.

Esta maneira de colocar a solução deste problema resolve a polêmica que se formava em torno da matéria, pois as posições de um lado ou de outro permaneciam aparentemente insolúveis. O outro problema consiste no seguinte: não procede o gênero em relação aos seus inferiores como um todo potencial, e suas partes apenas como partes potestativas? Desse modo, o gênero seria um todo potencial, oposto ao todo actual, que não explica o todo actualmente constituído, mas uma parte dele, actualizável e contraível; portanto, comportando-se potencialmente. 

Resta agora saber se o gênero, considerado como um ente potencial, procede como todo ou como parte potencial. Por outro lado, sendo o gênero tomado como algo potencial, então o que é que se comporta como actual em relação a ele? As respostas, que se podem oferecer a tais perguntas, com base a resolver os problemas suscitados, são as seguintes: comportando-se o gênero como um ente potencial, é ele contraível por adição de alguma diferença, que não está contraída em acto naquela razão superior, mas em potência. 

Assim, a humanitas, como animalidade-racionalidade, estaria contida, como potência, no gênero animal. Como a racionalidade é uma perfectibilidade superior à animalidade, como poderia o inferior conter o superior? Actualmente seria impossível, porque o menos teria actualmente mais. Poderia contê-la potencialmente e, neste caso, o anterior teria capacidade de actualizar o superior, ou por si ou por outro. Por si, implicaria uma causa eficiente que o realizasse, e uma forma que o informasse, procedendo, então, a sua potenciaildade de dois modos: uma activa (causa eficiente), e uma passiva, que se comportaria como matéria informável. 

Ora, tais operações não se podem emprestar ao gênero, que é um ente de razão, um ente metafísico, mas a outros entes, o que levaria a especulação a afastar-se do campo da Lógica para penetrar, propriamente, no da Metafísica, matéria que não caberia tratar aqui.

Portanto, impõe-se colocar o problema em  outros termos, como faremos a seguir: o gênero é um  quid  potencial em relação à composição metafísica,  porque, em sua qüididade específica, o gênero designa a parte contraível pela diferença, e é assim indeterminado e potencial, enquanto a diferença procede como parte contraente e determinante, já que o que tem a função determinante aqui seria ela. Nesse caso, o gênero procederia como matéria e a diferença como forma, para permanecermos dentro da esquemática aristotélica. Ademais, o gênero comportar-se-ia como matéria em relação ao todo composto, como algo incompleto em relação ao completo. Deste modo, o gênero procederia como um todo potencial ou como uma parte potencial. Ora, como as partes metafísicas não são propriamente partes, mas graus compõem, na verdade, o todo implicitamente, que não é totalmente explicitado por nenhum deles, tomado isoladamente. O gênero, portanto, quando considerado como parte, também é todo, mas um todo que não explicita o todo, mas apenas uma parte ou grau designável e completável por ulterior actualidade, que é dada pela diferença.


É assim um todo potencial que, potencialmente, é parte, quando completável pela diferença. Na espécie, portanto, o gênero é um todo potencial, que é contraído e completado pela diferença, constituindo uma parte ou grau metafísico da totalidade da qüididade específica.

Maior contractibilidade e completude só pode dar-se, posteriormente, por novas diferenças específicas, das espécies, já procedendo como gênero, até chegarmos, finalmente, aos indivíduos, que, com sua diferença individual, darão a máxima contractibilidade ao gênero.

Estas exposições, que escapam à argúcia dos modernos estudiosos da lógica, pouco familiarizados com elas e que até desconhecem o que realizaram os grandes investigadores dialécticos do passado, mostram como a Lógica é rica de problemática.

Vejamos agora, também sucintamente, se o gênero pode ser tomado como matéria, e a forma como diferença. Alguma natureza, como princípio de ser e de operar de uma entidade, é composta de forma e matéria, na concepção hilemórfica do aristotelismo; outras, porém, apenas de forma. Nenhuma, contudo, apenas de matéria, como se verá no exame da Metafísica de Aristóteles. Entre os escolásticos, e seria desnecessário citar as passagens em suas obras, que são inúmeras, muitos aceitam que o gênero, na coisa existente, pode tomar-se como referindo-se à matéria e a diferença à forma.

Mas note-se desde logo que matéria e forma estão na coisa, a primeira como estructura física, e a segunda como estructura formal (ou melhor: eidética), enquanto gênero e diferença são apenas graus metafísicos. Ora, nem a matéria dá graus, nem a forma, mas a forma dá grau à matéria. Ademais, é a forma o princípio da diferença, e não o inverso. A matéria está para a forma numa relação de potência para acto, e aquela é mera potencialidade; portanto, não dá graus. Mas o gênero dá. Logo, o gênero só pode ser tomado não da matéria nua, mas da matéria já informada. À primeira vista, a leitura da obra de Tomás de Aquino parece defen der esta tese, como alegam alguns tomistas, fundando-se no opúsculo 42, cap. 5, e na Summa Theologica I, q. 5o. art. 2 ad 1, etc. Contudo, se melhor lido, e sobretudo compreendido, Tomás de Aquino diz é o seguinte: a matéria, no ser composto, é a raiz da  sua potencialidade, mas o gênero não se refere apenas à matéria nua, mas à matéria somada à forma, intencionalmente referindo-se a um grau metafísico desta. Não diz Tomás de Aquino que é a matéria nua, mas a matéria informada já.

 E também não poderia proceder de outro modo, porque os entes não-materiais, imateriais e espirituais, que também têm graus metafísicos do gênero, não sendo compostos de matéria, não poderiam ter gênero se submetêssemos este a essa condição necessária. O mesmo teríamos que considerar nos accidentes, que, enquanto tais, não têm matéria, o que não cabe tratar aqui, como também não cabe o que referimos aos entes espirituais. Pode-se, contudo, dizer que a matéria, tomada como tal, é indeterminada e indiferente para receber qualquer grau formal, e este é o princípio do gênero.

NOTAS FINAlS SOBRE O GÊNERO

O gênero contém a espécie e as diferenças não actualmente, mas potencialmente. O gênero, enquanto tal, não se predica  per se  da diferença, porque, então, a definiria, e a diferença não participa do gênero, como o demonstra Aristóteles  in 4 Tópicos e, também, na Metafísica, em várias passagens do livro 10. O gênero não se predica das diferenças, mas das espécies. A diferença, que advém ao gênero, não lhe advém como uma parte à parte,  mas como um todo determinado e assinalado a um todo indeterminado e não assinalado. A diferença com o gênero formam unum per se. A distinção entre o gênero e a diferença é apenas de razão. Matéria e forma, num composto, são entes reais. O gênero divide-se por opostas diferenças. Se afirmamos uma, é  porque  há o seu contrário. O gênero, por isso, necessariamente, divide-se em seus contrários. Por essa razão, o gênero deve conter mais de uma espécie, necessariamente, e como conseqüência, não pode haver um  gênero que só tenha,  potencialmente, uma espécie.

E o fundamento está em a matéria de um contrário ter potência para outro contrário.

1)  Estabeleciam os escolásticos uma distinção entre o gênero lógico  e o gênero físico. O primeiro é o  gênero enquanto predicável, e o  segundo, o gênero enquanto é na coisa, ou, em outras palavras: o  primeiro  enquanto A coisa concebida, o segundo enquanto NA coisa concebida. Como vimos, o primeiro está para a espécie na relação de todo e parte, enquanto, o segundo está na  relação de parte e todo. O gênero físico também era chamado  gênero sujeito, e era considerado a coisa física, enquanto apta a receber diversas mutações.


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