CAPÍTULO 1
DO GÊNERO
Tudo leva a indicar
que nem o gênero nem a espécie são termos simples 1. O gênero, com
efeito, diz-se, desde logo, de uma colecção de indivíduos que se comportam
de certa maneira em relação a um único ser e 20 em relação entre si. É em virtude dessa
significação que se fala da raça dos Heráclidas, pelo facto de sua maneira
de comportar-se 2 e de ter uma origem única, a saber, Hércules, e
usa-se também de todos aqueles que têm entre si um certo parentesco, a
partir do antepassado comum, e o nome que se lhes dá separa-os
radicalmente de todas as outras raças.
Gênero é tomado,
ainda, em outro sentido: 2 é o ponto de
partida 3 da geração de cada coisa, quer se trate do próprio
gerador, quer do lugar em que uma coisa foi engendrada. Assim, dizemos que Orestes surgiu da raça de
Tântalo, e Hílis, da de Hércules; dizemos, ainda, que Píndaro é da raça
dos Tebanos, e Platão, da dos Atenienses, pois a pátria é também uma espécie
de princípio da geração de cada coisa, do mesmo modo que o é o pai"4.
5 Este,
parece, é o sentido mais corrente: são chamados Heráclidas os descendentes
da raça de Hércules, e Cecrópidas, os descendentes de Cécrops, assim que
seus aparentados.
Chamou-se, de
início, gênero,
o ponto de partida da geração de cada coisa, depois, mais tarde, a
multidão dos que provêm de um só princípio, Hércules, por
exemplo, 5; ao
deliitá-lo e ao separá-lo dos outros, dizemos que esse grupo é integralmente
da raça dos Heráclidas.
10 Há, ainda,
um outro sentido de gênero, é o sob o qual está ordenada a espécie, e esse
nome certamente lhe foi dado por sua semelhança com os casos
precedentes: o gênero, nesse sentido, com efeito, é uma sorte de princípio
para todas as espécies que lhe estão subordinadas, e parece conter também
toda a multidão classificada sob ele 6.
O gênero, é, pois,
tomado em três sentidos, 15 e é o terceiro o do qual tratam
os filósofos: foi o que eles descreveram quando definiram o gênero
ao dizer que ele é o atributo essencial (in quid) 7 aplicável a
uma pluralidade de coisas, que diferem entre si especificamente (no
seu quid), como animal, por exemplo.
Com efeito, entre
os atributos, uns se dizem apenas de um só ser, como o são os indivíduos 8,
por exemplo, Sócrates, este homem aqui, esta coisa aqui; os
outros dizem-se de diversos seres, e é o caso dos gêneros, das espécies,
das diferenças, dos próprios e dos accidentes, que têm caracteres comuns e
não particulares a um indivíduo.
20 O gênero, é, por exemplo, animal; a
espécie, homem; a diferença, racional; o próprio, faculdade de
rir; accidente, branco, negro, o "sentar-se".
Assim, pois, os gêneros diferem, de um lado, dos atributos aplicáveis a um
único indivíduo, em serem atribuídos a uma pluralidade; diferem,
também, por outro lado, dos atributos aplicáveis a uma pluralidade,
a saber, 25 as espécies, pelo facto das espécies, sendo
totalmente atribuídas a diversos indivíduos, não o serem, contudo, senão a
indivíduos, que não diferem entre si especificamente, mas
apenas numericamente.
É assim que homem,
que é uma espécie, é atribuído a Sócrates e a Platão, os quais diferem um
do outro, não em espécie, mas em número, enquanto animal, que é um gênero,
é atribuído ao homem, ao boi e ao cavalo, os 3 quais diferem entre
si pela espécie, e não apenas pelo número.
O gênero difere do
próprio, por sua vez, por ser este atribuído a uma única espécie, da qual
é próprio e aos indivíduos classificados sob essa espécie; por exemplo,
a faculdade de rir é próprio só do homem e dos homens particulares; o
gênero, ao contrário, não é atribuído a uma única espécie, mas a uma 5
multiplicidade de termos que diferem em espécie.
O gênero difere,
por fim, da diferença, assim como dos accidentes comuns, embora as
diferenças e os accidentes comuns sejam atribuídos a termos múltiplos, e
que diferem especificamente, por não serem, contudo, atribuídos
essencialmente.
Com efeito, se
perguntamos a qual termo diferença e accidente são atribuídos, dizemos que
eles são atribuídos não essencialmente, 10, mas,
sim, qualitativamente; se se pergunta, por exemplo, qual (qualis) é o homem, dizemos que ele é
racional, qual é o corvo, dizemos que é negro; no primeiro caso, racional
é uma diferença, e, no segundo, o negro é um accidente. Mas quando se
pergunta o que é (quid)
o homem, respondemos que é um animal, e animal como dissemos, é gênero
do homem.
Conclusão: ser
afirmado de uma pluralidade de termos é o que distingue o gênero dos
predicados individuais atribuídos a um único indivíduo; ser afirmado de
termos especificamente diferentes é o que o distingue dos termos
atribuídos como espécies ou como próprios; enfim, ser atribuído
essencialmente é o que o separa das diferenças e dos accidentes comuns,
que são atribuídos aos sujeitos, dos quais são respectivamente atributos,
não em essência, mas em qualidade, ou numa relação qualquer. A noção de
gênero, tal como 20 acabamos de descrever, não
peca, contudo, nem por excesso, nem por defeito, de ciência 9.
1) Simples,
aplôs legesthai, em que o advérbio ap1ôs equivale ao conceito latino
de simp1ex.
2) Skesis, em
gr., relação, modo de comportar-se em face de outro.
3) Arkhê é o
princípio, ponto de partida. É distinto de stoikheion, que é elemento,
causa imanente. A causa é um princípio, tomado genericamente, não, porém,
todo princípio é causa. O ponto é princípio da linha, não, porém, sua causa.
4) Diz-se mais a mãe pátria.
4) Diz-se mais a mãe pátria.
5) Hércules,
como origem, é genos, genus, em latim, e genos é o conjunto de todos
os seus descendentes.
6) Hércules é
o princípio dos Heráclidas.
7)
Kathegorein, significa afirmar, atribuir, mas aqui a atribuição é
essencial, en tô ti esti de Aristóteles, cujo to ti equivale
ao qui est latino, a essência, a qüididade, que equivale muitas
vezes à primeira categoria, a substância, ousia, como veremos no
"Das Categorias", de Aristóteles.
8) Tá átoma,
os que não são divididos, ou não-divididos, impartíveis, insecáveis,
equivale, aqui, a indivíduos, os que não contêm gêneros nem diferenças que
lhes sejam inferiores, como veremos.
9) Condições
exigidas pelas regras da definição, como analisamos nos comentários, pois
a boa e adequada definição deve conter todo o definido e nada mais que o
definido.
§
SÍNTESE DA IDÉIA DE GÊNERO
A definição do
gênero é uma definição descriptiva e não essencial. Sua essência
consiste na razão de universalidade referente às espécies, que ele contém,
que a ele estão subordinadas, distintas in quid (segundo a qüididade de cada uma).
É um todo potencial, mas indeterminadamente, e parte potencial, porque se contrai pela
diferença na parte qüididativa da espécie.
Proporcionalmente,
o gênero refere-se à matéria de uma coisa, como a diferença refere-se à forma. Se o gênero constitui um todo, qualquer
todo não constitui um gênero. A diferença é que dá a determinabilidade ao gênero, que, enquanto tal, é indeterminado, e predica-se in quid,
incompletamente, de uma coisa.
Nas especulações
filosóficas sobre o sentido lógico do gênero, conclui-se, quando se
filosofa com sanidade, que o gênero
contém as diferenças
potencialmente, não actualmente. A espécie é, in concreto, o composto de
matéria e forma, por isso diz-se que o gênero refere-se
à matéria, e a diferença à espécie. Assim, animal, no homem, é
matéria, e a animalidade, o gênero. Racional é a diferença
de que racionalidade é a forma.
Homem é, pois, a espécie,
porque reúne ambas. Assim, homem pode ser olhado in concreto e in
abstracto. O gênero contém, potencialmente,
as diferenças, não actualmente. Assim, na Lógica, animal
contém potencialmente a racionalidade. O gênero as
contém, indeterminadamente, enquanto a espécie as
contém determinadamente. A espécie está contida, implicitamente, no
gênero, como parte. A espécie é um todo determinado de um todo
indeterminado, e não significado, mas implicitamente contido naquele.
Deste modo, a espécie perfecciona o gênero, porque actualiza uma de suas possibilidades, pois
a racionalidade está implicitamente contida in potentiam no gênero
animal. Como as diferenças podem ser múltiplas e heterogêneas, e
são típicas das espécies, o gênero não se pode predicar delas. Assim, não se pode predicar animal de racional,
dizendo-se: o que é racional é animal, porque racional não está
contido, actualmente, em animal. Também a diferença não se pode predicar do gênero. Deste modo, não se
pode dizer: é animal, logo é racional, porque não se pode ainda dizer que
animal é racional. E a razão é porque o que é predicado per
se de alguma coisa deve
estar contido actualmente em sua essência, já que a essência de uma coisa
exige o que é actual. Se o gênero se predicasse per se das diferenças, as espécies seriam todas
idênticas, pois o que as distingue é a diferença.
Mas o gênero predica-se per se da espécie, mas esta contém a
diferença, e o gênero é predicado incompletamente daquela. Pode-se,
contudo, predicar, sim, per
accidens: algum racional é animal, o que é válido.
Que se pode tomar
a matéria de uma coisa como gênero,
e a diferença como forma, justifica-se pelas seguintes razões: se há
coisas que não são compostas de matéria e forma, mas apenas de potência e
acto, estas podem ser consideradas como gênero e espécie, porque a
potência refere-se à genereidade, e o acto à formalidade. Nem tudo quanto
é assim tem matéria e forma, ou matéria informada. Mas tudo quanto
tem matéria e forma tem genereidade e formalidade. Tudo quanto é composto tem uma determinabilidade,
uma natureza determinada per se, à qual podemos, intencionalmente, chamar
gênero e diferença.
Toda coisa, que
tem uma qüididade, tem-na per se, e pode ser classificada no
predicamento aristotélico de substância.
A diferença na espécie não advém como uma parte da parte, mas um
todo determinado e assinalado a um todo indeterminado, e não assinalado.
Assim, logicamente, podem ser tomados como gênero e diferença.
Contudo, gênero e diferença não
são considerados como uma unidade per accidens, mas como uma unidade per se. Não há o gênero sem a espécie.
Não há animal
que não seja homem, cavalo, boi, etc. Animal é sempre,
especificamente, este ou aquele. A diferença não é algo que advém per
accidens ao gênero, mas per se.
A matéria com a
forma (informada) constitui unum per se. Deste modo, vê-se que o gênero
tem a razão da matéria, e a diferença a razão da forma. Como entes
de razão, gênero e diferença não se distinguem real-realmente, mas apenas
por
distinção de razão.
A matéria e a forma são partes reais-reais (in concreto), mas gênero
e diferença são partes de razão.
A diferença não é
um accidente que ocorre ao gênero, como o accidente que ocorre ao
indivíduo. Este último não forma unum per se com o subjecto, no qual inhere, mas
a diferença forma unum per se;
por isso nós podemos distingui-los apenas pela razão, já que são entes de
razão, como o são todos os entes lógicos.
O nome, que damos
às coisas, é um sinal intelectual do conceito. Tem ele, como função,
referir-se universalmente à intencionalidade. O que o nome significa é
a concepção intelectual, é algo que está na mente, que pode
representar, adequadamente ou não, o que está fundamentalmente na coisa,
já que nossos conceitos são proporcionados à nossa mente, e dada a imperfeição
dela, não se identificam com o que é na coisa, mas apenas
intencionalmente. Assim, quando conceituamos homem como animal racional,
notamos que nele há algo indeterminadamente em comum com os animais, e
determinadamente o que tem de diferente e próprio, a racionalidade. Nem
tudo quanto está no homem é representado determinadamente por animal, mas
indeterminadamente; enquanto, pela racionalidade, é representado
determinadamente. São estas razões que demonstram que a distinção que há
entre gênero e diferença é apenas de razão.
O animal, que está
no homem, não é o mesmo que está no cavalo, no leão, se os tomarmos in
concreto.
Como o gênero
predica-se in
quid incompletamente de um
ser, não lhe corresponde, como tal, nenhum indivíduo subsistente, porque
estes representam a espécie especialíssima, como cão, casa, árvore, homem.
Os gêneros são
divididos pelas diferenças opostas, que vão constituir as
suas espécies.
COMENTÁRIOS AO CAPÍTULO 1
Define Porfírio
como gênero "o atributo principal aplicável a uma pluralidade
de coisas, que diferem entre si especificamente", no seu quid,
no que constitui o seu quid (a sua espécie). O primeiro problema
que surge aqui é saber se essa definição é boa.
Desdobremos os
pontos principais daquela. 1) atributo
predicável de muitos, portanto sua universalidade é manifesta; 2) de muitos,
mas especificamente distintos, o que torna o conceito atribuído um
conceito genérico, pois o gênero contém as suas espécies, dada a
sua genereidade (genereitas); 3) predicado
in quid, en tô ti esti, que é a sua ratio praedicandi. É, pois,
um atributo essencial, e este é predicado de todos in quid, de todos os indivíduos
que entram na extensão do conceito.
Torna-se, agora, de máxima importância examinar os termos "de muitos especificamente
diferentes", e o significado de essencial (in quid) (en tô ti esti).
O que é genérico implica subordinados que tenham entre si algo em comum e
algo distinto. Mas o que têm em comum não pode ser algo meramente
accidental, contingente, que pode ter ou não, sem deixar de ser o que é, mas, sim, algo sem o qual o
ente deixa de ser o que é para ser outro, algo que o altera fundamentalmente.
Ao que constitui essa estructura eidética do ser chama-se essência formal
na linguagem aristotélica, e não é algo meramente accidental, com o se
verá ao examinar o accidente, mas algo que é intrínseco e actual, e
imprescindível da coisa, sob pena de deixar ela de ser o que é para ser
outra coisa. Mas tais coisas, que se dizem estar incluídas no gênero, que
participam da mesma essencialidade, possuem, contudo, também em sua
essência, algo que as distingue entre si.
De modo que aquele aspecto, que é geral, generalis, constitui o gênero, e o que
é deste e daquele em sua heterogeneidade é constituinte de sua
especificidade. Assim, o gênero possui os seus inferiores, as
espécies a ele subordinadas. Deste
modo, o
indivíduo abstracta-se no gênero e contracta-se na
espécie.
Conseqüentemente, a espécie é mais rica de notas que o gênero, que, por
ser geral, não inclui o que é específico senão potencialmente e não
actualmente como já o acentuava Santo Alberto in De Praedicabilibus,
tract. 3. c. 4. Ora, jamais se deve esquecer que, para Aristóteles, como
para os escolásticos, tanto gênero como espécie são entes de razão, e não
entidades sistentes de per se e in se, separadas ou não das coisas.
Predicar in quid significa
predicar essencialmente, e distingue-se da predicação in quale, que é a predicação
accidental, do que é accidental. Assim, a predicação in quid é uma predicação substantiva,
enquanto a predicação in quale
é uma predicação adjectiva, como nos mostra Tomás de Aquino em seu
"Summa totius Logicae Aristotelis". A diferença,
como racional no
homem, é algo qualitativo, é um qualis portanto, e predicá-lo do homem é predicá-lo
in quale, mas essa qualidade é algo que decorre da essência;
portanto, é um in quale in quid. E por que tal se dá? A razão é
simples. A diferença está em relação ao gênero numa relação de posterior a
anterior. Há prioridade do gênero e posterioridade da diferença. A
diferença não constitui o que é primariamente fundamental da essência,
mas algo que advém ao gênero, como
algo que, potencialmente, ele contém, cuja actualidade vai constituir a
espécie. A diferença, desse modo, contrai o gênero, e a espécie é o gênero
contraído pelo modo qualitativo da diferença, que é um adjacente. É o
que expressa Aristóteles nos Tópicos
7. cap. 3 (153 a 15), pois, no modo de predicação, o gênero predica-se in
quid e a diferença in quale.
A diferença, predicando-se no gênero, não sé o contrai na espécie, como
o completa, porque o gênero, tomado apenas em sua genereidade
predica-se incompletamente de alguma coisa. Por ter o gênero, em
função do seu gênero próximo (que o subordina), a função de espécie em
relação àquele, há, finalmente, como veremos em breve, uma espécie que não tem mais espécies
subordinadas, uma espécie que é apenas espécie, que é especialissimamente
espécie, e que se chama espécie
especialíssima, como o são aquelas que se predicam dos entes concretos,
como casa, árvore, mar, etc.
Deste modo, nota-se que, acrescentando-se
a predicação da diferença, o gênero se contrai, ou melhor, é tomado
contraidamente na espécie, que completa em acto o que naquele estava
apenas potencialmente, tornando-se, assim, um modo substantivo e in
quid de predicar. Assim, "predicar-se in quid (essencialmente)
de muitos diferentes especificamente", vê-se que tal é contraível
pela diferença, contida potencialmente, que, deste modo, mais o especifica,
o que mostra ser boa a definição de Porfírio.
Poderia haver uma dúvida: é a definição de Porfírio essencial ou descriptiva?
Ora, como já vimos, a diferença entre esses dois tipos de definição está
em a primeira apontar apenas os aspectos essenciais, e a segunda poder
apresentar algumas notas essenciais, mas, sobretudo, consistir em relatar
os aspectos accidentais, fazendo, propriamente, uma descripção do
definiens, e como se verá na análise da obra aristotélica,
diz-se que se definem as espécies e descrevem-se os indivíduos,
pelo menos no que tange à sua individualidade e à sua singularidade,
enquanto tomadas como tais.
É fácil, pois, notar-se que a razão de universalidade refere-se ao
específico, enquanto a razão de singularidade, ou os aspectos singulares
referem-se ao indivíduo. A definição de Porfírio é do primeiro caso, e,
portanto, não pode ser considerada uma definição descriptiva, e não o
pode, sobretudo, porque define in quid
e não apenas in quale.
Alegam alguns que a diferença, sendo predicada da essência, pois constitui
a essência da espécie, e sendo ela in quale, predica-se tambem in quale da essência do
gênero, pois há espécies que têm outras subordinadas, para as quais são
seus
gêneros.
Tomás de Aquino, em seus comentários à Metafísica de Aristóteles,
7. lect. 1, observa que a diferença é concebida como modo
determinante e actuante; o gênero, como determinável e contraível.
Portanto, o que se predica in quale (que é a predicação da diferença),
predica-se in quid também, in quale in quid; é
uma determinação actual, portanto qualitativa do quid, e é o que
Aristóteles chama de substância segunda (ousia déutera), pois a substância primeira,
logicamente considerada, é o gênero (ousia prote).
Por isso se diz que a matéria e a forma estão na coisa na proporção de
gênero e espécie. A matéria, nos seres corpóreos, nos aponta o
aspecto genérico, e a forma, o seu aspecto específico, para
permanecermos dentro da esquemática aristotélica: assim, em vaso-de-barro,
de barro é o aspecto genérico, as coisas de barro, e vaso, a forma, a
matéria barro informada como vaso.
Barro, por sua vez, pode ser dividido em sua espécie e em seu gênero,
etc. Assim, o gênero diz-se in quid e a diferença diz-se in
quale, como o afirma claramente Caietanus, nos comentários às Categorias
de Aristóteles, cap. 5.
Deste modo, o gênero, comparado à espécie, é um quid mais formal,
porque é menos contracto, como expressa Tomás de Aquino in "Summa
Theologica, 1.2. q. 18. art. 7. ad 3.Como última prova, tomemos estas
palavras de João de São Tomás Log. II P. Q. VII, art. 1, quando
oferece esta predicação: "Branco é colorado", o colorado
é tomado substantivamente com respeito a branco, e é adjectivo com
respeito a corpo ou sujeito da cor. De onde, com respeito ao sujeito, é
uma predicação denominativa e adjectiva; com respeito, contudo, a branco,
que é seu inferior, é, pois, predicação qüididativa em razão da
forma importada."
Quanto às expressões "que se predica de muitos especificamente
diferentes", não se deve esquecer que um gênero superior contém suas
espécies inferiores, que, por sua vez, são gêneros das espécies que lhes
estão subordinadas, até alcançarmos um gênero que não é mais subordinado a
nenhum outro, que é um gênero supremo, o qual Aristóteles chama de
predicamento ou categoria, como há, ainda, uma espécie
última, que não subordina nenhuma outra, que é a espécie
especialíssima, que é a das coisas concretas, aquela que só contém os
indivíduos.
Portanto, o gênero não se predica completamente dos indivíduos, mas
incompletamente, e também das espécies. Assim, animal, como gênero,
predica-se de homem e de cão, que são especificamente diferentes, mas
predica-se de Pedro, Paulo e do cavalo Corisco, mas genericamente, não
especificamente.
Deste modo, sem dúvida, a definição de Porfírio é boa e adequada, porque
é suficiente, breve, clara, recíproca, pois permite a conversão simples (o
que se predica essencialmente (in quid) de muitos especificamente
diferentes é o gênero) e não contém expressões negativas.
- PROBLEMÁTICA EM TORNO DO GÊNERO
Um outro problema que surge é o seguinte: não há meio termo entre substância
e accidente, como se verá em Aristóteles, no "Das
Categorias". Conseqüentemente, se a definição de gênero implica
a presença da sua diferença, e esta é um accidente, como se pode admitir
que da composição de uma substância com um accidente, possa surgir
qüididade per se, uma qüididade una per se, que não é nem substância nem
accidente? Não há aí nenhum meio termo possível. Uma qüididade não
poderia ser só substância nem só accidente. E como não há possibilidade de
um meio termo, como se resolver o problema? Se surgisse da combinação nem
seria unum per se substancialmente, nem unum per accidens.
Muitas foram as soluções propostas a esse problema, mas nem todas satisfazem.
Se fôssemos relatá-las, prolongaríamos o exame da matéria, sem necessidade
para a sua compreensão melhor.
Tais argumentos, porém, são improcedentes, porque a definição do gênero apenas apanha
o seu contexto lógico, não o ôntico. Quando se define o gênero, a
referência oferecida dirige-se apenas ao qüididativo, e não ao próprio subjectum, tomado em sua
concreção. É apenas uma conotação que se faz; é o objecto
tomado conotativamente; ou seja, tomado em suas notas essenciais
genéricas, e refere-se apenas a isso.
Quando dizemos que Paulo é um animal racional, tomamo-lo apenas conotativamente (em sentido lógico), e não quanto
à sua realidade ôntica, à sua concreção. Estamos, então, numa segunda
intenção, pois a primeira é a que se refere ao indivíduo em sua
onticidade, Paulo, e segunda intenção porque nos referimos à sua
logicidade. Assim já o entendiam João do São Tomás, no lugar anteriormente
citado, Caietanus, no cap. De Genere e no cap. 4 "De
Ente et Essentia", e também Tomás de Aquino em Metaph.
lect. 9 e em lect. 8 e em lect. 4, e ademais em lect. 7 e 1
encontramos, também, a mesma maneira de considerar.
O nome concreto significa o subjectum in communi, não em sua onticidade.
Na verdade, é nossa mente que apanha essas diferenças,
que se dão na coisa, tomadascomo
unum per se. Se separamos pela mente o accidente da coisa unum per se, não esqueçamos que o
accidente é da coisa, e não a compõe, formando parte do seu compositum. Se
assim fosse, o accidente seria uma substância, o que é absurdo.
Ademais, o accidente não é um
ser componente de uma coisa, mas algo que se dá na coisa. Os accidentes
são entia quibus, entes de uma
coisa, pertencentes à coisa, e não componentes estructurais
dessa coisa. Assim, quando predicamos in concreto "Pedro é branco", não predicamos
de Pedro ser o branco, mas ter
o branco. Dizemos que tal sujeito está afectado da qualidade branco,
e não que o sujeito é o branco. É ele significado pelo branco, sem ser o
branco. A brancura, aí predicada, não é tomada em abstracto, não é o
mesmo que a brancura, tomada apenas qüididativamente. Diz-se apenas que
nele há algo que se pode classificar como brancura. Na verdade, Pedro não
é constituído de homem e brancura, não é constituído de duas qüididades,
que o compusessem onticamente, mas apenas o que nele há é classificado,
logicamente, em homem e brancura.
Portanto, o unum per se que é Pedro não é uma conjunção de substância e accidente no sentido lógico, mas é Pedro concretamente. Em palavras mais modernas: a onticidade de Pedro não é constituída da logicidade de homem e de branco, não havendo, portanto, nenhuma validez no problema que inutilmente alguns escolásticos desejaram propor.
Portanto, o unum per se que é Pedro não é uma conjunção de substância e accidente no sentido lógico, mas é Pedro concretamente. Em palavras mais modernas: a onticidade de Pedro não é constituída da logicidade de homem e de branco, não havendo, portanto, nenhuma validez no problema que inutilmente alguns escolásticos desejaram propor.
Outra série de problemas, em torno deste tema, surge quanto à caracterização
do gênero como um todo em relação aos seus inferiores, às espécies, como
partes.
E então quatro problemas se apresentam, que provocaram uma grande
literatura sobre eles por parte dos escolásticos, cuja temática,
problemática e solução, passaremos a compendiar da maneira mais sucinta
possível.
Os problemas são: comporta-se uma natureza qualquer, tomada como gênero,
como um todo em relação aos seus inferiores? Afirma-se como uma natureza
total actual ou apenas parcial? É um todo potencial? Pode-se tomar o
gênero da matéria, e a diferença da forma? Num conceito universal, a
relação entre o todo e as partes pode ser considerada: a) segundo o modo
de conceber ou b) segundo a coisa concebida e significada (1).
Segundo o modo de conceber, o universal tem razão de todo para os seus
inferiores como partes, desde que possa ser predicado a esses. Assim,
conceptivamente, a espécie homem é uma parte do gênero animal. Se é
concebido como parte a respeito dos seus inferiores, como qualquer todo é
maior que suas partes, e toda parte é menor que o todo, tal modo não
poderia ser concebido a não ser absurdamente: o gênero animal é uma parte
da espécie humana. Não pode, pois, o todo ser menor que nenhuma de suas
partes, nem nenhuma destas maior que o todo. Portanto, um universal,
tomado como todo em relação aos seus inferiores, tomados como partes, tem
de comportar-se segundo a
lei do todo x parte, isto é, segundo o modo de conceber-se.
Vejamos agora segundo o modo de ser da coisa concebida e significada. Neste
caso, todo e parte são considerados como na coisa, a qual nós concebemos
e significamos, mas como algo real-realmente nela.
Se examinarmos os primeiros predicáveis, verifica-se que a espécie compõe-se
do gênero e da diferença. Estes últimos são partes da espécie, e esta é um
todo em relação a eles, pois a espécie é composta do gênero e da
diferença. Vê-se, deste modo, que o gênero, enquanto tomado como uma coisa
concebida, comporta-se em relação aos seus inferiores como um todo em
relação às partes, mas tomado como real-realmente na coisa
concebida, já se inverte a relação, porque o gênero é parte da espécie, já
que ele vai compor esta com a diferença.
Colocado assim o tema, desde logo se torna patente uma problemática a
exigir soluções. Na verdade, gênero, diferença, espécie não são
entidades físicas, mas metafísicas; portanto, numa composição, não são
propriamente partes, mas, sim, graus.
As partes metafísicas não são coisas distintas componentes de um todo,
mas diversas designações da mesma coisa, que mais ou menos determinam,
como vemos bem expresso em Tomás de Aquino in "De Ente et
Essentia", in 3 cap.
Nessas condições, esses graus metafísicos não podem propriamente
comportar-secomo partes e como todo. O homem não é um composto de animal
e de racional, mas animal-racional, em que animal e racional não se
comportam como partes, mas como graus metafísicos do ser
humano.
Deste modo, gênero não é uma parte física, mas
metafísica, que se comporta, ora como parte, ora como todo; é
todo enquanto modo concebido e parte enquanto na coisa concebida, mas todo
e parte sempre metafísicas, ou melhor graus. Assim, animal, no homem, apenas designa
a parte sensitiva, não totalmente o homem, mas o que pertence à essência
do homem, como também a parte sensitiva do cavalo, etc., ou de um insecto
qualquer, sem que tal queira dizer que o animal de um homem e o de um
insecto sejam idênticos, mas diz que o homem e o insecto tal são animais,
sem que animal tenha aqui uma precisão máxima, o que é melhor expresso
pelos conceitos metafísicos de animalidade, que é muito mais abstracto,
enquanto animal é mais concreto. Pode-se predicar a animalidade, que é
um designatum abstracto aos inferiores; mas in concreto, exige outros exames que faremos mais adiante.
A conclusão que se tira em torno desta problemática, é a seguinte: o
gênero comporta-se como todo em relação aos seus inferiores, tomados como
partes, segundo o modo de ser concebido; mas como parte, segundo na
coisa concebida e significada. Desse modo, não é na coisa, tomada in
concreto, uma parte desta, mas um grau metafísico desta; ou seja, do
que é predicado da coisa.
Assim, animal, predicado de homem, tal conceito refere-se à parte
sensitiva, ao sensório-motriz, componente desse ser, que envolve não só a
forma sensitiva, com exclusão de ulteriores perfeições, mas diz o que é
sensitivo nele, como também o que nele há a mais, referindo-se, assim, de
certo modo, à sua totalidade.
Esta maneira de colocar a solução deste problema resolve a polêmica que
se formava em torno da matéria, pois as posições de um lado ou de outro
permaneciam aparentemente insolúveis. O outro problema consiste no
seguinte: não procede o gênero em relação aos seus inferiores como um todo
potencial, e suas partes apenas como partes potestativas? Desse modo, o
gênero seria um todo potencial, oposto ao todo actual, que não explica o
todo actualmente constituído, mas uma parte dele, actualizável
e contraível; portanto, comportando-se potencialmente.
Resta agora saber se o gênero, considerado como um ente potencial, procede
como todo ou como parte potencial. Por outro lado, sendo o gênero tomado
como algo potencial, então o que é que se comporta como actual em relação
a ele? As respostas, que se podem oferecer a tais perguntas, com base a
resolver os problemas suscitados, são as seguintes: comportando-se o
gênero como um ente potencial, é ele contraível por adição de alguma
diferença, que não está contraída em acto naquela razão superior, mas em potência.
Assim, a humanitas,
como animalidade-racionalidade, estaria contida, como potência, no gênero
animal. Como a racionalidade é uma perfectibilidade
superior à animalidade, como poderia
o inferior conter o superior? Actualmente seria impossível, porque o menos
teria actualmente mais. Poderia contê-la potencialmente e, neste caso, o
anterior teria capacidade de actualizar o superior, ou por si ou por
outro. Por si, implicaria uma causa eficiente que o realizasse, e uma
forma que o informasse, procedendo, então, a sua potenciaildade de dois
modos: uma activa (causa eficiente), e uma passiva, que se comportaria
como matéria informável.
Ora, tais operações não se podem emprestar ao gênero, que é um ente de
razão, um ente metafísico, mas a outros entes, o que levaria a especulação
a afastar-se do campo da Lógica para penetrar, propriamente, no da
Metafísica, matéria que não caberia tratar aqui.
Portanto, impõe-se colocar o problema em outros termos, como faremos a
seguir: o gênero é um quid potencial em relação à composição
metafísica, porque, em sua qüididade específica, o gênero designa a
parte contraível pela diferença, e é assim indeterminado e potencial,
enquanto a diferença procede como parte contraente e determinante, já que
o que tem a função determinante aqui seria ela. Nesse caso, o gênero
procederia como matéria e a diferença como forma, para
permanecermos dentro da esquemática aristotélica.
Ademais, o gênero comportar-se-ia
como matéria em relação ao todo composto, como algo incompleto em relação
ao completo. Deste modo, o gênero procederia como um todo potencial
ou como uma parte potencial. Ora, como as partes metafísicas não são
propriamente partes, mas graus compõem, na verdade, o todo implicitamente, que não é
totalmente explicitado por nenhum deles, tomado isoladamente. O gênero,
portanto, quando considerado como parte, também é todo, mas um todo que
não explicita o todo, mas apenas uma parte ou grau designável e
completável por ulterior actualidade, que é dada pela diferença.
É assim um
todo potencial que, potencialmente, é parte, quando completável
pela diferença. Na espécie, portanto, o gênero é um todo potencial, que é
contraído e completado pela diferença, constituindo uma parte ou grau
metafísico da totalidade da qüididade específica.
Maior contractibilidade e completude só pode dar-se, posteriormente, por
novas diferenças específicas, das espécies, já procedendo como gênero, até
chegarmos, finalmente, aos indivíduos, que, com sua diferença individual,
darão a máxima contractibilidade ao gênero.
Estas exposições, que escapam à argúcia dos modernos estudiosos da lógica,
pouco familiarizados com elas e que até desconhecem o que realizaram os
grandes investigadores dialécticos do passado, mostram como a Lógica é
rica de problemática.
Vejamos agora, também sucintamente, se o gênero pode ser tomado como
matéria, e a forma como diferença. Alguma natureza, como princípio de ser
e de operar de uma entidade, é composta de forma e matéria, na concepção
hilemórfica do aristotelismo; outras, porém, apenas de forma. Nenhuma,
contudo, apenas de matéria, como se verá no exame da Metafísica de
Aristóteles. Entre os escolásticos, e seria desnecessário citar as
passagens em suas obras, que são inúmeras, muitos aceitam que o gênero, na
coisa existente, pode tomar-se como referindo-se à matéria e a diferença à
forma.
Mas note-se desde logo que matéria e forma estão na coisa, a primeira
como estructura física, e a segunda como estructura formal (ou melhor:
eidética), enquanto gênero e diferença são apenas graus metafísicos. Ora,
nem a matéria dá graus, nem a forma, mas a forma dá grau à matéria.
Ademais, é a forma o princípio da diferença, e não o inverso. A matéria
está para a forma numa relação de potência para acto, e aquela é mera
potencialidade; portanto, não dá graus. Mas o gênero dá. Logo, o gênero só
pode ser tomado não da matéria nua, mas da matéria já informada. À
primeira vista, a leitura da obra de Tomás de Aquino parece defen der esta
tese, como alegam alguns tomistas, fundando-se no opúsculo 42, cap. 5, e
na Summa Theologica I, q. 5o. art. 2 ad 1, etc. Contudo, se melhor
lido, e sobretudo compreendido, Tomás de Aquino diz é o seguinte: a
matéria, no ser composto, é a raiz da sua potencialidade, mas o
gênero não se refere apenas à matéria nua, mas à matéria somada à
forma, intencionalmente referindo-se a um grau metafísico desta. Não diz
Tomás de Aquino que é a matéria nua, mas a matéria informada já.
E também não poderia proceder de outro modo, porque os entes
não-materiais, imateriais e espirituais, que também têm graus metafísicos
do gênero, não sendo compostos de matéria, não poderiam ter gênero se
submetêssemos este a essa condição necessária. O mesmo teríamos que
considerar nos accidentes, que, enquanto tais, não têm matéria, o que não
cabe tratar aqui, como também não cabe o que referimos aos entes
espirituais. Pode-se, contudo, dizer que a matéria, tomada como tal, é
indeterminada e indiferente para receber qualquer grau formal, e este é o
princípio do gênero.
NOTAS FINAlS SOBRE O GÊNERO
O gênero contém a espécie e as diferenças não actualmente, mas potencialmente. O gênero, enquanto tal, não se predica per se da diferença, porque,
então, a definiria, e a diferença não participa do gênero, como o demonstra Aristóteles
in 4 Tópicos e, também, na Metafísica, em várias passagens do livro 10. O gênero não se predica das diferenças, mas das espécies. A diferença, que advém ao gênero, não lhe advém como uma parte à parte,
mas como um todo determinado e assinalado a um todo indeterminado e não assinalado. A diferença com o gênero formam unum per se. A distinção entre o gênero e a diferença é apenas de razão. Matéria e forma,
num composto, são entes reais. O gênero divide-se por opostas diferenças. Se afirmamos uma, é porque
há o seu contrário. O gênero, por isso, necessariamente, divide-se em seus contrários.
Por essa razão, o gênero deve conter mais de uma espécie, necessariamente, e
como conseqüência, não pode haver um gênero que só tenha, potencialmente,
uma espécie.
E o fundamento está em a matéria de um contrário ter potência para outro
contrário.
1) Estabeleciam os escolásticos uma distinção entre o gênero lógico e o gênero físico. O primeiro é o gênero enquanto predicável, e o segundo, o gênero enquanto é na coisa, ou, em outras palavras: o primeiro enquanto A coisa concebida, o segundo enquanto NA coisa concebida. Como vimos, o primeiro está para a espécie na relação de todo e parte, enquanto, o segundo está na relação de parte e todo. O gênero físico também era chamado gênero sujeito, e era considerado a coisa física, enquanto apta a receber diversas mutações.
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