A expressão “invasão vertical dos bárbaros” não é criação nossa. Já a havia lançado o político alemão Rathenau, no século passado. Mas a característica que lhe queremos dar, é de certo modo outra que a pretendida por aquele político. Impossível, porém, precisar as nossas intenções, sem que primeiramente clareemos os conceitos: INVASÃO, VERTICAL E BÁRBARO. Iniciemos, contudo, pelo último.
O termo BÁRBARO era empregado de início, pelos gregos e romanos, para referir-se a todos os estrangeiros. Contudo, tomou, depois, o sentido do que não é civilizado, do que é inculto, do que combate toda e qualquer manifestação da cultura. Neste sentido, também o tomamos nesta obra. Mas é mister que sejam ainda apresentados outros aspectos que nos facilitarão ainda mais a compreensão do que pretendemos propor.
O termo BÁRBARO, entre os gregos, não se referia apenas ao estrangeiro, mas a todo povo que falasse uma língua diferente da sua, como para os romanos eram os povos que não falavam nem grego nem latim.
Posteriormente, os romanos chamaram bárbaros aos povos não civilizados, ou àqueles que não estavam sob a jurisdição romana.
A História nos relata que houve muitas invasões HORIZONTAIS de bárbaros; ou seja, invasões que se processaram com maior lentidão ou não, maior rapidez ou não, e que consistiram na penetração pacífica ou violenta de povos, que se deslocavam para as regiões habitadas por outros, impondo-lhes o seu poder ou pelo menos os seus costumes. Mas se pode falar em invasão de bárbaros, quando essa se processa no território que corresponde à civilização. Não foram essas invasões tão cruentas como muitas vezes são descritas, pois as que se processaram no antigo Império Romano, sobretudo no período final, processaram-se gradualmente, e muitas vezes com o apoio interno dos próprios civilizados, já barbarizados em muitos dos seus costumes.
Na verdade, a invasão que é a penetração gradual e ampla dos bárbaros não só se processa HORIZONTALMENTE pela penetração no território civilizado, mas também VERTICALMENTE, que é a que penetra pela cultura, solapando os seus fundamentos, e preparando o caminho à corrupção mais fácil do ciclo cultural, como aconteceu no fim do império romano, e como começa a acontecer agora entre nós.
Esta obra é uma denúncia dessa invasão, que, preparando-se e desenvolvendo-se há quase quatro séculos, atinge agora a um estágio intolerável, e que nos ameaça definitivamente. Como obra de denúncia, e que aspira a alcançar o maior número de pessoas, dela afastamos, tanto quanto possível, o tecnicismo da linguagem científica, que cabe às disciplinas abordadas aqui, temas que são próprios do seu objeto formal.
Nossa linguagem é a mais geral possível, o suficiente para tornar claros os aspectos em exame. Os fatos que apontamos, os processos que registramos, os acontecimentos que reunimos em favor da nossa tese não são todos os que se dão, mas aqueles que julgamos principais. Desde logo verá o leitor que cada assunto, que tratamos, admitiria um estudo mais prolongado e mais exaustivo. Não era possível faze-lo. sob pena de tornar esta obra volumosa e, portanto, mais restrita aos leitores. Fizemos questão de apenas apontar o lado bárbaro que apresenta, deixando uma longa margem de meditação para o leitor.
À exclamação dos romanos: BÁRBAROS EXTRA MUROS 1 ( os bárbaros estão fora dos muros das cidades, da civilização) hoje podemos responder: BÁRBAROS INTRA MUROS 1 (os bárbaros já se acham dentro do âmbito cercado pelos muros, em plena civilização, assumindo aspectos, vestindo-se com trajes civilizados, mas atrás dessa aparência, atuando desenfreadamente para dissolver a nossa cultura).
De outro lado, há as disposições prévias corruptivas, que estão em todo ciclo cultural, e atuam desde o primeiro momento, com maior ou menor intensidade, para destruir a forma do ciclo que repelem.
Os elementos ativos corruptores, guiados por uma inteligência, de vontade maliciosa, sempre souberam aproveitar-se do barbarismo como instrumento para solapar a cultura. E hoje, mais do que nunca, manejam com uma habilidade de estarrecer, dispondo de meios capazes para tal, imprimindo ao trabalho corruptivo uma intensidade e um âmbito nunca atingidos em momento algum.
Podem muitos aceitar essa situação como inevitável. Nenhum ciclo cultural, dizem, pode pretender eternizar-se. Mas esse argumento, que parece verdadeiro, é rotundamente falso. Se os ciclos culturais são contingentes, não se pode estabelecer um rumo necessário de modo absoluto, mas apenas hipotético. O que pode perecer, apenas pode perecer, e seu perecimento não é de necessidade absoluta que se dê mais cedo, porque há possibilidades de perdurar se o equilíbrio entre as disposições prévias corruptivas e as disposições prévias geradoras for encontrado. E isso é também um possível, como é um possível que a vida humana se prolongue indefinidamente. O homem poderá, então, perecer, mas poderá, também, perdurar. A perduração do contingente não encontra uma razão definitiva em contrário, mas apenas contingente também. Ademais, toda vida aspira à perpetuação.
E esse desejo em nós não é, portanto, algo que se oponha à vida. Se conhecemos o que faz corromper as coisas e apomos, de modo eficiente, o que equilibre a destruição, com elementos conservativos, a corrupção final pode ser desviada para mais distante. Poder-se-á, então, prolongar o ser perdurante por um tempo não limitado, mas que poderá ser retardado tanto quanto puder aquele manter-se em equilíbrio entre os contrários.
Pensando, assim, não é um desejo vão o nosso que pretenda prolongar o ciclo de nossa cultura. Se ela traz em seu bojo ideais supremos da humanidade, como o império da justiça, a moderação, a prudência sábia e santa, a coragem moderada e justa, a elevação da mulher e da criança, se pregamos a igualdade entre os homens, defendendo o direito de cada um ao lado dos seus deveres, se admitimos que se deve dar a todos oportunidades iguais, se afirmamos a liberdade e negamos as algemas e as coações opressoras, se pregamos o amor entre os homens, e o apoio -mútuo, que fará que cada um ajude ao seu próximo, se desenvolvemos a ciência, democratizamos o saber e elevamos o padrão da vida humana, se nosso ciclo, em suma, reúne, numa síntese feliz, tudo quanto de grande anelou a humanidade, e se ainda não atualizamos tudo o que podemos e devemos realizar, como, então, desejar a destruição deste ciclo para volver ao dente por dente, olho por olho, às polaridades senhor-e-escravo, bárbaro-e-culto, opressor-e-oprimido, fiel-e-infiel?
Se temos em nossa estrutura cultural, no âmbito das suas idéias superiores, tudo quanto de maior a humanidade ardentemente sonhou e desejou, como admitir que se destruiu o que é fundamento para uma caminhada mais promissora? Que afastemos o que obstaculiza, que lutemos contra o que desvirtua, que fortaleçamos o que nos auxilia a marchar para a frente, está bem! Mas renunciar, demitirmo-nos do conquistado, para volver atrás, isso nunca! Lutar pelo nosso ciclo cultural, fortalecer os aspectos positivos para impedir o desenvolvimento do que é negativo, eis o nosso dever.
²Estes temas são desenvolvidos em Filosofia e História da Cultura (3 vols.) e Análise de Temas Sociais (3vols.).
Nós julgamos que o primeiro passo para o cumprimento desse dever está em denunciar o que nos ameaça.
Por isso denunciamos. E esta é a razão desta obra.
Ela se encontra dividida em duas partes. Na primeira parte, preferimos os temas eminentemente mais adequados à sensibilidade e à afetividade do homem. Na segunda, o que se refere preferentemente à intelectualidade. A invasão vertical dos bárbaros processa -se em ambos campos, razão pela qual julgamos, para melhor compreensão de nossa tese, fazer esta distinção.
O autor, Mário Ferreira dos Santos - Invasão Vertical dos Bárbaros.
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