sábado, 18 de julho de 2015

Mário Ferreira dos Santos - Sobre Deus [...]

Mário Ferreira dos Santos Sobre Deus
Sobre Deus, Mário Ferreira dos Santos - Prólogo.
Embora muitos digam que em nosso século não se verifica um desenvolvimento do ateísmo com a mesma intensidade verificada no século XIX, não pensamos assim e os fatos vem corroborar a nosso favor. As grandes campanhas contra o ateísmo realizadas nos séculos anteriores, as condições históricas, a exploração ideológica, a divulgação da cultura mais em extensidade do que em intensidade e o excesso de especialismo, ao lado da invasão indevida de estetas na filosofia que a querem transformar num mesmo campo de disputas como o que transformaram o da estética, tudo isso, em suma, tem contribuído ao lado das condições históricas para que o ateísmo tivesse um desenvolvimento muito grande, se não em seu aspecto absoluto, porque não cremos neste ateísmo de caráter absoluto, pelo menos num aspecto suficientemente perigoso para perturbar o destino da própria humanidade.
Nota-se, como teremos oportunidade de ver no corpo desta obra, que o que caracteriza o ateu é a sua incompleta, imperfeita e deficiente concepção de Deus. Ele sempre constrói uma idéia de Deus muito antropomórfica, muito aproximada ao que, comumente,é apresentado nas manifestações religiosas mais populares. Até certo ponto se justifica que interpretem assim, porque as religiões na sua propaganda, na sua catequese, na sua ação pastoral, têm apresentado Deus de formas tão antropomórficas, tão primárias, que é natural que aqueles que não tem um conhecimento mais profundo da teologia oponham-se a tais concepções e construam então concepções deístas, e algumas teístas, mas pelo menos contrária ao teísmo expresso, em geral, nas religiões predominantes.
Esta obra inicia uma série sobre os temas que mais afligem o homem e que são sem dúvida alguma a causa do seu estado de angústia. Porque apesar dele ter atingido,graças à técnica e à ciência, um grau mais elevado de poder sobre as coisas, de bem-estar, e de poder aspirar à melhorias inegáveis na sua vida, ele se sente inquieto, inseguro. E, como conseqüência, esse estado de angústia abrangeu a todas as camadas sociais, desde aquelas que são as usufrutuárias dos benefícios sociais, como as que são as mais sacrificadas. O homem de hoje está enfermo em sua alma, e tão enfermo que quer negá-la inclusive.
Podemos encontrar. na literatura moderna, homens que digam assim: “Como podemos crer num Deus que cria milhões e milhões de seres miseráveis para enviá-los aos suplícios eternos? Um Deus que é um verdadeiro tirano e o pior de todos os tiranos? ” Um André Gide que chega a exclamar: “Chamei Deus a tudo quanto amo e eu quis amar todas as coisas; chamei Deus a natureza, um Deus sem caridade. Mas vosso Deus”, referindo-se aos crentes, “não tem maior caridade que a que vós mesmos lhe emprestais, não há nada que não seja inumano, menos o próprio homem”.
E Lenine concluiu que Deus nada mais é do que um complexo de idéias, produzidas pela prostração intelectual em que se vê consumida a humanidade pelos fenômenos da natureza e pela escravidão das classes. E assim podemos observar, que através dos tempos modernos, não são poucos os que levantam a sua voz para desmerecer a figura de Deus como o primeiro princípio de todas as coisas. E vão fortalecê-la, sobretudo, dentro do campo das idéias políticas; pois encontramos o desenvolvimento do ateísmo não só nos seguir dores, digamos, de esquerda, mas também de direita. Homens que representaram o que se chama a burguesia também o defenderam.
Vemos como influiu, por exemplo, em a obra de Feuerbach, A Essência do Cristianismo, que o tornou de hegeliano ortodoxo num coletivista ateu. Vimos como os anarquistas do século XIX aceitaram, na sua quase totalidade, o ateísmo como se ele representasse a verdadeira e sublime concepção dos socialistas, ao mesmo tempo que todos os socialistas, por sua vez, atribuíam o ateísmo à burguesia. Mas se a burguesia precede aos socialistas e se ela for atéia, e se nela predomina o ateísmo, como poderia o socialismo, usando das mesmas armas vir lutar contra a burguesia, julgando que atacando a idéia de Deus poderia deste modo solapar a posição burguesa? Não há uma nítida contradição nestas afirmativas? Em fins do século passado, e no princípio deste, e até nos nossos dias, desenvolve-se uma campanha ateísta organizada.
A propaganda anti-religiosa e atéia, por exemplo, organizada pela Rússia e pelos partidos comunistas do mundo inteiro, foi uma obra de vulto extraordinário. Em 1923 apareceu a obra de Jaroslavski sobre o ateísmo na Rússia em que ele afirma que todo o socialismo deve ser ateísta. Para Lenine: “A sociedade moderna se funda toda ela na exploração das grandes massas da classe obreira por uma pequena minoria pertencente à classe dos pequenos proprietários capitalistas. E qual é a forma de usar sobretudo esse domínio, essa exploração? Através da religião”. A religião, era para ele, um meio, o instrumento mais completo e mais perfeito para poder dominar a classe trabalhadora e explorá-la.
No entanto, antes de surgir Lenine, já Leão XIII Havia lançado o Rerum Novarum, o que vem provar a indevida afirmação. Não pretendemos, nestas obras, defender a Igreja Católica, defendemos sim a concepção religiosa, quer seja católica, quer seja de qualquer outra. Apontamos os erros nas concepções religiosas, onde eles estiverem, e justificamos as suas verdades dentro das possibilidades que dispusermos. Mas há em nossa obra uma intencionalidade importante que se deve salientar: é que as religiões não são um óbice ao desenvolvimento do ser humano, nem tampouco de elevá-lo nos mais altos estágios e evitar as explorações, porque através dos tempos, aqueles que estudam a história verão que foram as religiões as que mais lutaram em defesa dos pobres, as que mais lutaram em defesa dos oprimidos e também as que melhor organizaram alguma coisa em beneficio dos mais fracos. O domínio de alguns homens sobre os outros decorre por outras razões e por outras causas que não podem ser explicadas apenas pelo aproveitamento da idéia religiosa para exercer esse domínio.
É uma ingenuidade pensar-se que há homens dominados por outros que são seus dominadores, simplesmente porque aceitam esse domínio por um fundamento religioso. Se há exemplos, se há casos em que isso aconteça, não podemos pelo menos imputar ao cristianismo porque este jamais defendeu, sob nenhum aspecto, a exploração do homem sobre o homem. É doutrina genuinamente de Cristo a luta pela igualdade humana, tanto quanto é possível dentro das condições do homem, respeitando as diferenças naturais, mas nunca a ponto de que essas diferenças sirvam para justificar que uns vivam à custa do esforço de outros. Essa imputação não se deve fazer porque ela é injusta e historicamente falsa. Se houve, na Igreja, homens que puseram a sua inteligência a favor das classes dominantes ou dos senhores do momento, não se pode imputar essa atuação a todos os que compuseram a Igreja através dos tempos, não só à Igreja Católica como à qualquer outra das grandes religiões. A exploração humana se faz através do uso de outros instrumentos, muito embora se manejem alguns instrumentos religiosos para justificar o predomínio de uns sobre os outros, que se funda sempre na força organizada, no Kratos político, sem o qual não é possível manter-se. Os exemplos que na história se apresentam de povos que se submeteram a outros, considerando-se mais elevados e que aceitaram a exploração do homem sobre o homem por princípios religiosos são em número tão diminuto e representam um aspecto tão excepcional que deles não se pode estabelecer a regra geral, porque a regra geral é o contrário: as religiões lutaram mais pela liberdade e pela igualdade humana do que qualquer outra idéia política ou qualquer ideologia.
Agora, que haja interesses que estão acima das próprias ideologias, interesses secretos, as genuínas forças ocultas que desejam solapar a religião para poder fundar o seu império sobre tudo e sobre todos é outro problema, seríssimo e gravíssimo, que é difícil tratar e difícil de provar; porque estes, que sempre estão nos bastidores da história, são suficientemente solertes e astuciosos para não deixar provas que possam amanhã servir de instrumentos para denunciá-los. Mas, que há uma inteligência organizada no mundo atual, buscando destruir todos os fundamentos religiosos, todo princípio de piedade, todo respeito a um Ser Supremo, princípio e origem de todas as coisas, para com isso poder desligar os homens, impedir a assembléia dos homens, a eclésia,a união, o amor, para fazer com que cada um veja no outro seu inimigo, esse trabalho há, porque essa suprema divisão facilitará o domínio fácil de um pequeno grupo sobre toda a humanidade, porque terão enfraquecido os homens a ponto de que esse pequeno grupo, com poucos instrumentos, poderá dominar totalmente os outros para seu beneficio.
Lutar portanto pela grandeza das religiões, pela idéia teísta, mostrar a improcedência das acusações comuns que se tem feito à religião, julgamos de nosso dever, e esta seqüência de obras que se iniciam por este volume tem essa finalidade: de reunir, do pensamento humano, numa espécie de antologia, o que há de mais elevado, de mais perfeito, de mais sublime, de mais seguro, para servir de esteio para àqueles que, embora creiam, mas sentem qualquer vacilação, e também para auxiliar àqueles que perderam a sua fé para que a recuperem, e os que ainda não a alcançaram, para que possam alcançá-la. Esta é uma tarefa que escolhemos sabendo que é grandiosa e difícil, talvez superior as nossas forças, mas julgamos que é de nosso dever experimentarem preendê-la e levá-la a bom termo. O leitor, posteriormente, julgará se cumprimos ou não com esta finalidade.

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